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Uma rosa roubada para Santa Terezinha

Alceu se levantou com dificuldade, tentando reprimir uma reclamação contra o genuflexório, aparentemente mais duro a cada missa. Apalpou os joelhos para amenizar as dores e ficou observando os detalhes da capela enquanto aguardava o início da celebração. Diante do altar estava uma imagem de Santa Terezinha do Menino Jesus, cuidadosamente instalada pelas freiras sobre um estrado de madeira. Ao redor da santinha havia um grande número de rosas, aguardando a benção que viria ao fim da missa. Os únicos sons a romper o silêncio eram preces sussurradas ecoando nas paredes altas, e os folhetos que alguns usavam para abanar o calor intenso que outubro trouxe a tiracolo. A quietude foi quebrada pelos estalos de passos apressados nas escadas da entrada. Sem fôlego, uma menina pediu bênção ao padre, que estava à porta, saudando os fiéis retardatários. Algumas pessoas se voltaram para ver de quem era a voz infantil, tão cheia de urgência e aparente cansaço. Alceu também se virou no banco, e
Postagens recentes

A Piscina de Betesda

Pieter Aertsen A porta das ovelhas não mais existe O tanque onde as águas curavam está vazio Somente indesejáveis, leprosos e inválidos, persistem Transeuntes torcem o nariz, ébrios de ódio febril Para eles apenas a desgraça ali reside Cegos, riem por não enxergar a Graça e nem o brilho Pois brilha a voz dos cantores leigos e insistentes E os versos acalorados de poetas em exílio Distantes por cantarem verdades prementes Na fumaça do tabaco os evitados se abraçam em alívio Por ter em Betesda conforto e irmandade ardente E joelhos se dobram, do Cordeiro vem o auxílio Num mundo de carne, de euforia demente Os inválidos festejam na alegria do Altíssimo Que os uniu na busca da Verdade, e isso só eles entendem Cresce a tapeçaria de dourado fio Reunindo louvores de diversas gentes Imagens felizes de sorrisos sofridos É assim que vivem, à beira da piscina, os doentes Rejeitados e cuspidos pelos orgulhosos filhos Do mundo sem cor, da vida dopada, da histeria estr

Por uma garrafa de uísque

Aquele dia foi peculiar, mesmo para alguém como eu. Acordei com a cabeça doendo, resultado do excesso de álcool da noite anterior. Não conseguia lembrar como fora parar ali, mas sabia que estava em casa, na minha cama mofada e fétida. Tudo fedia no meu apartamento. A umidade pegajosa fazia as paredes exalarem um odor insuportável, que se misturava ao cheiro de comida apodrecida que vinha da pia e do fogão; o sofá era um monte de pano velho, poeira e pulgas; minha cama era muito antiga, e o colchão não passava de uma tira fina de espuma, que transformava as horas de sono em dores nas costas. E era só isso, um único cômodo sujo e bagunçado. O cheiro daquele lugar era inconfundível, e quando acordei tive certeza de que estava em casa. Levantei e me vesti. Na verdade apenas joguei o casaco velho sobre os ombros, pois havia dormido com a roupa do dia anterior, nem mesmo havia tirado as botas surradas. Ao pôr os pés na rua, percebi que não tinha para onde ir. Caminhei sem destino pelos

A promessa

Steve Johnson A fumaça do cigarro saiu pelas narinas de Augusto, dançando no ar frio da tarde. Ele ignorava as pessoas que se apressavam pela praça, assim como elas não percebiam sua presença. O dia sumiu e a noite trouxe o cheiro de quentão, vindo da feira de inverno. Os apressados deram lugar aos passeantes, interessados nas comidas típicas, nas lembrancinhas, no conteúdo das barracas. Porém, na cabeça de Augusto só havia espaço para um único pensamento, algo sombrio que ele tentava ignorar. Caminhou entre a alegria dos outros, pelas ruas largas onde a vida noturna começava a despertar. Jovens como ele seguiam no sentido contrário, em direção à parte velha da cidade, camisetas de bandas e jaquetas de couro; moças se escondiam nas sombras com vestes insinuantes que desafiavam a baixa temperatura e o vento cortante; botecos  estavam com portas abertas, seus frequentadores já de bochechas rosadas. Mas Augusto não viu nada disso. Entrou no shopping, foi direto ao banheiro e lav

Girassol para o falecido

Krappweis Este texto foi publicado, originalmente, em março de 2013. Por uma razão que desconhecia, acabou comparecendo àquele velório, sem conhecer ninguém, nem mesmo o morto. E era contra velórios, achava o evento insólito demais, pessoas chorando ao redor de um cadáver encaixotado. Algumas torradas e xícaras de café para aliviar o desconforto da cena, e ele se obrigou a chegar perto da estrela da festa. Levou um susto quando viu que, estirado no caixão diante dele, estava ele mesmo. Algodão nos ouvidos e nas narinas, terno preto ironicamente bem desenhado e cabelo penteado. No rosto macilento havia um sorriso abobalhado, daquele tipo de que suaviza o nervosismo. Sentiu-se mal diante daquilo, uma fraqueza estranha, e também um vazio que desconhecia, uma mistura de tristeza e raiva, como se nada mais tivesse graça, motivo, sentido. Percebeu os olhos das pessoas, julgando-o. Não, ele não morreu, estava ali e todos os viam. Era apenas uma parte sua que havia falecido: a alegri

Pele fria

Este texto foi originalmente publicado em setembro de 2011. Heirate mich . Pobre homem que chorava aos urros. Arrastava-se pelos arredores da igreja, cheio de dor e amargura, deteriorando. Alimentava-se dos restos que encontrava no lixo das casas próximas, ou da comida que o padre, caridosamente, às vezes lhe servia. Magro e assustador, com a barba dominando-lhe a face e os cabelos sujos pelos ombros, causava espanto nas crianças e repulsa nos adultos. Nos fundos da igreja havia um cemitério, no qual sua esposa estava sepultada, e o amor que ele tinha por ela era tão forte, que a perda o enlouqueceu. Não conseguiu se conformar com sua morte, e as lembranças dos bons momentos que passaram juntos estavam sempre a lhe perturbar. Passava as noites sobre sua lápide, entregue a lamúrias infindáveis, até o galo saudar o dia. Alheio ao mundo e às outras pessoas, cada vez mais animalesco e agressivo. Nos dias de frio, ardia em seu peito a chama da angústia, pois ele lembrava do calo