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Com as árvores

Pequeno conto sobre desejos. Alguns dias do ano são carregado de angústia, nostalgia e vontade de se desligar de tudo, voltar ao primordial, à Terra, ao canto tribal, gritar a plenos pulmões, livre.

E que todos possam ser felizes em seus próprios mundos.

No fim do post, aperte o play, e ouça a música que inspirou este conto, dos finlandeses do Korpiklaani.


A lama da rua era pegajosa, as carroças atolavam, e as bestas que as puxavam não conseguiam seguir adiante.

A chuva caía há pelo menos três semanas, insistente, em seu ritimo suave. O cheiro das ruas era insuportável, havia lixo por toda parte, e não havia latrina nas casas, e os dejetos eram despejados onde deveríamos caminhar.

Mas eu cresci ali. Era assim que eu via o mundo. E vez ou outra o Sol surgia, e fazia as pazes conosco. Era tão bom! Mas logo ele ia embora novamente, e nuvens escuras tomavam seu lugar.
E vinha a chuva, constante, insistente, teimosa.

E naquele dia eu caminhava até a estalagem na saída Norte do povoado, ensopado. Fui chamar meu tio, pois meu pai precisava da ajuda dele.
Como qualquer recinto fechado naquela cidade, o ar do estabelecimento era úmido e mofado. Hoje em dia isso me causa até vertigem. Mas quando criança, era como eu vivia.
E ali, no salão, um velho estava sentado tranquilamente, bebericando uma grande caneca de cerveja.

Passei por ele e fui direto ao balcão, chamar pelo merceeiro. Ele veio, e disse que meu tio não estava mais ali.
Frustrado, dei meia volta, e já estava à porta quando o velho disse:

- Ei menino! Venha cá.

Atendi seu pedido.

- Pode fazer um favor a um velho?

Fiz com a cabeça que sim.

- Peça ao merceeiro um pedaço de queijo e mais cerveja. E sente-se comigo, para comer e beber um pouco, e trocarmos algumas palavras.
- Mas senhor, meu pai me espera em casa.
- Seu pai não vai ralhar com você. Diga-lhe que esteve com o velho Taavi.

Fiz como o velho pedira, e me sentei ao seu lado. Ele era muito tranquilo, e seu olhar distante e calmo como a superfície de um lago ao Sol da Primavera. Só posso fazer essa comparação graças a ele.
Pois foi por causa dele que quis abandonar aquele vilarejo maldito.

- Chove muito por aqui, não? - disse ele.
- É sim. É época de chuvas.
- Menino, eu vivo aqui há nove anos. Essa época de chuvas dura praticamente o ano inteiro. Isso não te chateia?
- Não.
- Mas claro! Você nem deve ter saído desta região ainda, não é? Já viajou alguma vez na vida?
- Não senhor.

O velho sorveu um longo gole de sua caneca.

- Ah, menino! Você precisa ver a beleza do mundo! Eu venho de lugares onde as épocas de chuva são bem menores que estas daqui. E tem SOl.

"O Verão é belo, alegre e quente, como as chamas de uma lareira; o Outono é encantador, com suas cores amareladas, e o vento frio que parece acariciar seu rosto; o Inverno é branco, e um pouco triste, mas ainda assim tem sua beleza; e por fim, a Primavera é uma dádiva dos deuses!
Você jamais verá tantas cores!"

- Parece bonito!
- E é! E existe mais! Florestas e bosques com o verde mais vivo do mundo, e colinas onde a grama tem um aroma muito agradável.

Eu nunca vira aquelas coisas. Mas era agradável ver como ele ficava contente ao descrever aquele tal lugar. A julgar pelo seu olhar e seu sorriso nostálgico, ele tinha lembranças sublimes.

- E as noites são perfeitas! Você, meu menino, nunca viu tantas estrelas, nem nunca verá. E a Lua ilumina toda a Terra, e mais parece o Sol da noite.

"E existe um bosque, o meu lugar favorito em todo o mundo. Era até lá que eu ia para brincar quando tinha a sua idade. Foi lá que eu encontrei o Amor da minha vida, a minha eposa querida. Foi lá que eu descobri a vida.
Neste bosque existia uma cabana antiga, abandonada há muitos anos. Meu lugar secreto desde minha infância. Meu castelo."

Ele tinha tanto sentimento quando falava daquele lugar, que me fez sentir uma espécie de nostalgia, uma pitada de saudade de coisas que eu sequer conhecia na época

- Flores que nascem no campo, e colorem tudo que a sua vista pode alcançar. Ervas perfumadas que curam as feridas, e frutos de árvores cheias de vida. Aqui não vemos esse tipo de coisa. Aqui é tudo infértil, com água demais e Sol de menos. Aqui está tudo condenado, nesse lamaçal asqueroso.

E tamanho foi o desprezo que ele empregou em sua última frase, que até mesmo eu senti um pouco de nojo do lugar onde eu morava.

- E por que veio morar aqui, senhor? - perguntei.
- Eu já viajei muito, por Terra e Mar. Parei aqui, pois os anos estavam pesando em minhas costas. Agora eu estou bastante descansado, e planejo voltar ao meu lugar amado antes que minha vida acabe.

E ele sorriu.
Assim seguimos conversando, e ele me fascinava cada vez mais, falando não só de seu lar, mas também de outros belíssimos lugares que visitara durante a vida.

Voltei para casa feliz, e como o velho me disse, meu pai não ralhou comigo. Ao ouvir o nome Taavi ele se acalmou.
Sonhei com aquelas paisagens sagradas que o velho descrevera para mim durante a tarde. Acordei feliz, e fui até a estalagem quando terminei minhas tarefas em casa. Ele não estava lá.
O merceeiro estava triste e cabisbaixo, e quando perguntei sobre o velho Taavi, ele pegou minha mão e me levou através das ruas do povoado. Alguns minutos de caminhada depois, passamos por um cortejo fúnebre. Ao ver o defunto, meus olhos marejaram.

O velho Taavi estava lá, calmamente deitado, sob o céu cinzento. Ao sairmos do povoado, seu corpo antigo foi coberto de óleo, e o fogo o comsumiu por inteiro. Naquela tarde, para o meu espanto, a chuva nos deu uma trégua.

Agora eu escrevo estas palavras de uma velha cabana, no interior de um velho bosque. Já viajei por tantos lugares, que nem me lembro mais. Conheci muitas pessoas, e muitos povos. Nunca mais voltei àquele povoado desgraçado e imundo. Graças ao velho Taavi.
Seu castelo é exatamente como ele descrevera. Devo minha vida a ele. Agora que estou velho, aproveito meus últimos fôlegos em um lugar sagrado.

Com as árvores, jamais estou sozinho. E amigos ao meu redor, a me fazer sorrir, esquilo, gamo, águia e coruja. Vento que sopra em meu rosto, envolve meu corpo, agita meus cabelos.
Verde que enche os olhos, Sol que ilumina a alma. Grito feliz que ecoa nos campos vastos, meus pés correm velozes, enquanto meu espírito cresce em contentamento sem fim. Até mesmo a chuva é agora minha amiga.

E em meu coração carrego o Velho Taavi, Amado senhor que me fez ser livre.
Seja feliz, em Terra, Ar, Fogo e Água. Sempre comigo, entre as árvores.

Comentários

  1. Gostei muitíssimo, meu caro.
    Mostra exatamente o quão podemos ser incentivados a conhecer o que vai além daquilo que é palpável para nós, a provar o gosto de águas que nascem distantes...

    Quando incentivados, adquirimos uma força maior, um impulso, o que faz com que estejamos mais dispostos para desbravar os novos horizontes.
    Devemos ser sempre gratos àqueles que abrem nossos olhos para tais conselhos e indicações, mesmo que não estejam mais entre nós.

    Muito bem escrito, meus parabéns!
    Gostei da música também!

    Um forte abraço,
    Lucas Neves.

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  2. Ow Grande Lucas!
    Obrigado pelo comentário, cara!
    E que bom que gostou da música. Eu a considero mágica, faz com que eu me sinta entre árvores mesmo. Incrível!

    E é sobre isso mesmo, sobre o despertar do interesse por aquilo que é bom mas ainda é desconhecido, quando alguma alma bondosa vai e te faz sentir vontade de ir adiante.

    Fico feliz que teha captado o sentido do conto!
    =D

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  3. Quem nunca foi "acordado" por histórias contadas? Sempre imaginava as histórias que meus tios, pais e avós contavam, desejando, quem sabe um dia, fazer parte de alguma delas - com ou sem eles.

    Belo texto, Marlon.
    Forte Abraço

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  4. Olá, Fábio!
    Obrigado pelo comentário!

    E é verdade. Às vezes as pessoas colocam tanto carinho ao falar de algum assunto, que só o que você quer é viver aquilo também.

    E em certos momentos isso é um incentivo que pode mudar sua vida para melhor...
    Quem sabe!

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