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Mostrando postagens de setembro, 2017

A promessa

Steve Johnson A fumaça do cigarro saiu pelas narinas de Augusto, dançando no ar frio da tarde. Ele ignorava as pessoas que se apressavam pela praça, assim como elas não percebiam sua presença. O dia sumiu e a noite trouxe o cheiro de quentão, vindo da feira de inverno. Os apressados deram lugar aos passeantes, interessados nas comidas típicas, nas lembrancinhas, no conteúdo das barracas. Porém, na cabeça de Augusto só havia espaço para um único pensamento, algo sombrio que ele tentava ignorar. Caminhou entre a alegria dos outros, pelas ruas largas onde a vida noturna começava a despertar. Jovens como ele seguiam no sentido contrário, em direção à parte velha da cidade, camisetas de bandas e jaquetas de couro; moças se escondiam nas sombras com vestes insinuantes que desafiavam a baixa temperatura e o vento cortante; botecos  estavam com portas abertas, seus frequentadores já de bochechas rosadas. Mas Augusto não viu nada disso. Entrou no shopping, foi direto ao banheiro e lav

Girassol para o falecido

Krappweis Este texto foi publicado, originalmente, em março de 2013. Por uma razão que desconhecia, acabou comparecendo àquele velório, sem conhecer ninguém, nem mesmo o morto. E era contra velórios, achava o evento insólito demais, pessoas chorando ao redor de um cadáver encaixotado. Algumas torradas e xícaras de café para aliviar o desconforto da cena, e ele se obrigou a chegar perto da estrela da festa. Levou um susto quando viu que, estirado no caixão diante dele, estava ele mesmo. Algodão nos ouvidos e nas narinas, terno preto ironicamente bem desenhado e cabelo penteado. No rosto macilento havia um sorriso abobalhado, daquele tipo de que suaviza o nervosismo. Sentiu-se mal diante daquilo, uma fraqueza estranha, e também um vazio que desconhecia, uma mistura de tristeza e raiva, como se nada mais tivesse graça, motivo, sentido. Percebeu os olhos das pessoas, julgando-o. Não, ele não morreu, estava ali e todos os viam. Era apenas uma parte sua que havia falecido: a alegri

Pele fria

Este texto foi originalmente publicado em setembro de 2011. Heirate mich . Pobre homem que chorava aos urros. Arrastava-se pelos arredores da igreja, cheio de dor e amargura, deteriorando. Alimentava-se dos restos que encontrava no lixo das casas próximas, ou da comida que o padre, caridosamente, às vezes lhe servia. Magro e assustador, com a barba dominando-lhe a face e os cabelos sujos pelos ombros, causava espanto nas crianças e repulsa nos adultos. Nos fundos da igreja havia um cemitério, no qual sua esposa estava sepultada, e o amor que ele tinha por ela era tão forte, que a perda o enlouqueceu. Não conseguiu se conformar com sua morte, e as lembranças dos bons momentos que passaram juntos estavam sempre a lhe perturbar. Passava as noites sobre sua lápide, entregue a lamúrias infindáveis, até o galo saudar o dia. Alheio ao mundo e às outras pessoas, cada vez mais animalesco e agressivo. Nos dias de frio, ardia em seu peito a chama da angústia, pois ele lembrava do calo

Tempestade

Este texto foi publicado aqui na Caverna, originalmente, em setembro de 2011. Pensando nos acontecimentos que me guiaram até aqui, a primeira coisa que me vem à mente é minha chegada àquele pedaço de terra perdido e distante, que serviu de abrigo para meu corpo durante algum tempo. Um lar solitário no meio de um mar gelado e cinzento. Mas no dia em que cheguei o Verão estava no auge, e o clima era acolhedor. Minha surpresa foi tão grande que quase sufoquei no instante em que abri os olhos. Alguns dias antes eu estava perdido em sonhos impossíveis. O ar que entrava em meus pulmões trazia o cheiro infinito do mar, o perfume abençoado das águas gigantes, útero eterno que me envolvia por completo. Eu subia e descia lentamente, num ritmo hipnótico, e assim estava há tanto tempo que minha alma voava livremente, entre os diversos mundos existentes. Minha respiração acompanhava o movimento das ondas, sem que eu tivesse controle sobre isso. Meu corpo, ao perceber a ausência de minha alma

O perfume do desejo

Este conto foi originalmente publicado em junho de 2011, inspirado por uma canção do Rammstein. Du riechst so gut... Naquela noite fria eu corria entre as árvores. A neve virgem cobria o chão, tornando ainda mais difícil a minha jornada. O ar que saia de meus pulmões se condensava diante de minhas narinas e minha boca escancarada. A noite já estava na metade, e a Lua me observava através dos galhos nus. Eu havia perdido o juízo, e seguia em frente apenas por instinto. É estranho lembrar de tudo hoje, como se fosse algum sonho... Minha memória reteve cada detalhe daqueles momentos de loucura. A ânsia, o desejo, o fogo que ardia dentro de mim, a vontade de afundar meus dentes em sua carne... Ainda não sei o que me deixou assim, mas acredito que foi o cheiro dela. O cheiro daquele corpo jovem e firme, cujas curvas perfeitas eram a obra-prima dos deuses. Os cabelos negros que caíam compridos pelos ombros frágeis emolduravam um rosto imaculado. Olhos cor de mel, grandes e chei