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Pele fria


Este texto foi originalmente publicado em setembro de 2011.

Heirate mich.

Pobre homem que chorava aos urros. Arrastava-se pelos arredores da igreja, cheio de dor e amargura, deteriorando. Alimentava-se dos restos que encontrava no lixo das casas próximas, ou da comida que o padre, caridosamente, às vezes lhe servia. Magro e assustador, com a barba dominando-lhe a face e os cabelos sujos pelos ombros, causava espanto nas crianças e repulsa nos adultos.

Nos fundos da igreja havia um cemitério, no qual sua esposa estava sepultada, e o amor que ele tinha por ela era tão forte, que a perda o enlouqueceu. Não conseguiu se conformar com sua morte, e as lembranças dos bons momentos que passaram juntos estavam sempre a lhe perturbar. Passava as noites sobre sua lápide, entregue a lamúrias infindáveis, até o galo saudar o dia. Alheio ao mundo e às outras pessoas, cada vez mais animalesco e agressivo.

Nos dias de frio, ardia em seu peito a chama da angústia, pois ele lembrava do calor da pele, dos seus corpos unidos. Quando o vento trazia o perfume das flores tumulares, ele recordava o cheiro do cabelo dela, tão doce. Lembrava do cheiro de seu suor quando, enlouquecidos de amor e desejo, se uniam nos jardins da cidade em noites de lua cheia.

Tudo o fazia lembrar daquela que um dia fora a sua alegria. Lembranças cotidianas, singelas, prazerosas, pequenos detalhes da vida. Nada poderia substituir sua amada. Nenhuma mulher no mundo seria capaz de preencher a lacuna em seu peito.

O verão chegou, e com ele a lembrança de que há um ano o corpo dela descia por um buraco rumo ao repouso eterno debaixo da terra. Um ano de luto. Ela escapou por entre suas mãos. Há um ano ele gritava de desespero enquanto as flores na lápide ainda estavam frescas.

O céu azul da tarde deu lugar à nuvens pesadas de chuva, exatamente como no dia do sepultamento. O universo se desmanchava ainda mais na mente daquele homem, e a água que começou a cair do fez a realidade derreter por completo. A certeza de que ela o aguardava era maior do que a verdade. "Ela não morreu, apenas foi embora. Ela me quer, ela precisa de mim. Ela me chama!"

Pensamentos funestos gritavam. Uma pequena centelha de razão dizia-lhe que o corpo da esposa já não era o mesmo, que a pele, antes suave e bela, agora era cinza, sem vida, macilenta. Mas ela fazia tanta falta, e a angústia o sufocava de maneira tão violenta, que ele não enxergava mais nada. "Cavarei com minhas mãos! Cravarei minhas unhas na terra, sete palmos, para poder ver o rosto que me fazia tão feliz!"

Euforia dominava seu corpo, enquanto a tempestade o fustigava. A única luz vinha dos relâmpagos que iluminavam seus olhos ansiosos. Lágrimas brotavam de seus olhos, enquanto seu peito pulava de felicidade doentia. Suas unhas se partiam na terra enquanto ele cavava cada vez mais fundo. Havia sangue em seus dedos feridos, e a dor o instigava, bem como as gotas pesadas de chuva que se chocavam contra seu rosto. A loucura era maior do que qualquer coisa no mundo, e ele só enxergava sua amada, sorrindo...

Meia noite. Os sinos da igreja soaram, enquanto o temporal acalmava. O mundo respirou aliviado com o fim da tormenta, mas ele continuava incansável. E ele, coberto de lama, chafurdava na terra, como um animal solitário e incontrolável.

De repente tocou em algo mais sólido que o barro. Era o caixão. Ali dentro ela o esperava. Chamava-o, gritava seu nome. Ele ardia de paixão, seu amor cego queimando no peito. Belas lembranças de tempos distantes, tudo tão vivo que ele quase podia tocar, sentir...

Esmurrou a tampa do caixão. Socou a madeira, que para ele simbolizava a separação dos dois. Com esforço ele conseguiu abrir o esquife, e lá estava ela, no seu mais belo vestido. Um ímpeto de amor, paixão e luxúria percorreu o corpo do homem, como a onda de mar revolto que engole a terra. Ele não via a pele cinza e morta de sua amada. Tampouco via que seu corpo agora era magro e frágil. O cheiro pútrido e nauseabundo não tinha efeito em suas narinas, e ele não enxergava um cadáver.

Em seu delírio passional, só o que via no caixão era a sua bela, de pele macia, de corpo viçoso, cujo perfume era mais doce que o cheiro dos bosques no início da primavera.

As nuvens deram trégua ao céu noturno, e a Lua cheia iluminou a cena de amor que se desenrolava no cemitério. Ergueu seu corpo da sepultura e prendeu-o num abraço forte, cheio de saudade.

Um beijo apaixonado, relembrando os bons tempos, e a pele dela rasgou como papel. A realidade surgiu aos poucos diante do homem, que voltava a si. Sentiu o gosto horrível da pele morta, e percebeu que ela se desfazia em seus braços. O horror o atingiu com violência quando percebeu o que havia acontecido.

O tempo parou. A Lua viajou pelo firmamento, as nuvens foram embora. O galo anunciou a chegada do dia, e ele ali, nu, coberto de vermes, percebeu.

A pele dela era fria e sem vida.

Mais uma vez ela se foi.

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