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Confissões Noturnas - Parte III

Esta é a terceira e peúltima parte do conto Confissões Noturnas. Inicialmente seria uma trilogia, mas como a terceira parte ficou longa demais, resolvi deixar o desfecho para uma quarta parte, apesar de detestar números pares. Mas não se preocupem, a quarta parte é breve, mas decisiva.

Agradeço a todos os que comentaram, e convido a você que está lendo que também comente, e deixe sua opinião sobre essas palavras mal escritas.

Devo dar crédito à minha Coruja, que me ajudou a cortar os excessos desnecessários deste texto.


Confissões Noturnas - Parte I
Confissões Noturnas - Parte II
Confissões Noturnas - Parte III
Confissões Noturnas - Parte IV


Os olhos do merceeiro saltaram. Ele estava espantado. Mas pelo sorriso de Thanatos do que pelo relato. Aquele homem era louco. Recuou na cadeira, e pela primeira vez começou a temer o estranho.
Thanatos, ao perceber o gesto, voltou aos modos de antes, melancólico e doloroso.

- Perdoe-me. Não tenha medo de mim, pois já fazem alguns anos que a Loucura abandonou meu corpo.

Aquilo de certa forma acalmou o merceeiro. Mais uma caneca de vinho, para ambos. O frio era grande, e o velho nem percebeu o quanto aquilo era bastante estranho, afinal estavam na primavera.
Thanatos bebeu de sua caneca.

- E me conte, senhor... Como foi que conseguiu matar o carcereiro a dentadas?

O velho merceeiro mau conseguiu acreditar que havia perguntado aquilo.

- Foi algo intrigante. Eu não comia praticamente nada durante o dia todo, e estava sempre levando surras do carcereiro, isso sem falar nas vezes em que a Loucura fazia com que eu me jogasse contra as paredes da masmorra. O que quer dizer que eu estava sempre fraco. Minha magreza era, creio eu, crônica e absurda.

"Mas apesar disso eu fui capaz de atacar o carcereiro. Não planejei nada. Certo dia ele levou a comida, jogou-a no chão à minha frente, e voltou-se para trancar a porta. Me armei do garfo e pulei sobre ele. Encostei o talher em sua garganta, e ele ficou imóvel. Acho que meu ato realmente o deixou estupefato por alguns momentos. Assim, antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, cravei meus dentes em seu pescoço.
A luta foi ferrenha, mas em momento algum eu o larguei. Devo ter recebido alguns golpes, mas já estava habituado à dor."

- Isso é terrível, senhor!
- Sim, é terrível. Mas...

E os olhos de Thanatos voltaram a brilhar, e o sorriso louco de antes voltou a brincar em seus lábios pálidos.  Cercado pelo frio crescente, o merceeiro fitou, pasmado, a cobinação de prazer e ódio no rosto do homem.

- Os gritos, meu senhor. Os gritos. Música magnífica. Os deuses de todos os mundos se uniram, e entoaram a canção mais bela do mundo, vigorosa, sublime, vil e carnicenta. O som de seus berros me deram tanto prazer quanto o gosto de seu sangue.

Em agitação crescente, Thanatos continuava seu relato como quem estivesse sendo tomado por um êxtase indescritível. E voltou a olhar dentro dos olhos do velho, que a esta altura já estava desvairado de pavor.

- O senhor não sabe, nem nunca saberá, a sensação que é ter a glória da vida de outro ser em sua própria boca, escorrendo por seu queixo, quente e vermelha!

"Eu sei que estava fora de mim, e que meu espírito fora completamente tomado pela doce Insanidade. Finalmente ela deixou de me assediar, e me tomou por completo. E por causa disto, estas lembranças voltaram à minha mente aos poucos, durante os anos subsequentes, algumas vezes em sonho.
E em todas as vezes que estas imagens surgem em minha mente, elas se apresentam cobertas de um véu vermelho, fino e transparente. É assim que ela vem até mim, minha doce e rubra Insanidade."

O merceeiro estava realmente horrorizado. Sentia medo e asco do estranho. Homem vil e repugnante, louco, doente, insano até o mais profundo canto da alma.
Não sabia o que fazer, nem o que falar. Não se tratava de uma brincadeira, uma farsa. Aquele homeme falava a verdade.
Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, o frio ao se redor diminuiu.

- Foi assim que fugi. Mas só recobrei a razão muitos meses depois. Cometi inúmeros crimes neste tempo. Assassinei pessoas nas ruas. Invadi quartos de criados e escravos. Arranquei a vida de velhos trabalhadores, como o senhor. - E ao ouvir isso nosso velho estremeceu e se encolheu na cadeira. Thanatos continuou como se não tivesse percebido. - Tirei a vida de velhas, violei donzelas e depois as matei; dei cabo de soldados e nobres; matei gente rica e gente pobre. Sempre à noite, sempre com minhas mãos e meus dentes, e alguma lâmina vez ou outra.

"Mas eu tinha um gosto especial pelas jovens, cuja pele macia e alva era tão convidativa... Satisfazia minha volúpia, e depois minha Insanidade. A pele das jovens cediam facilmente aos meus dentes, e eu engolia sua vida, enquanto seu frágil corpo amolecia.
Tempos doces e terríveis."

Era difícil para o merceeiro crer no que ouvia, apesar de ele ter certeza de que aquilo tudo era verdade. Seu espanto era grande ao ver a simplicidade com que o estranho contava seus crimes, tão vis e terríveis. "Não se trata de um homem, pensou, mas sim uma besta!"

- Creio que é hora de me deitar, Sr. Thanatos - disse o velho levantando-se.
- Mas senhor, ainda não terminei de contar minha história.
- Já ouvi o suficiente. Tenha uma boa noi...

Thanatos estava em pé. Seus olhos brilhavam, rubros, e seu rosto era inteiro ódio.

- Volte a se sentar, senhor.

O frio no ambiente ficou subitamente insuportável. Os ossos doeram, as pernas falharam, os joelhos tremeram.
Ao cair na cadeira, o velho acreditou estar diante da própria Morte. E de fato, aqui ele estava aos portões da Terra dos Mortos.
Seu coração se encheu de desespero, seus ouvidos se encheram de gritos e berros de criaturas malditas. Dor e ódio, na atmosfera, no ar.

Thanatos começou a caminhar de um lado a outro do salão.

- Me perseguiram. Me feriram. Mas eu não era culpado. Não fiz nada de errado. Admito minha culpa no caso da princesa violada. Mas este foi meu único crime. Afinal, ao tirar a vida de todas aquelas pessoas, eu apenas buscava aliviar uma vontade mais forte que o mundo. Era uma celebração, um ato sublime. Era tudo sagrado. Ainda é.

"Tudo era simples, intenso, sangrento, belo e poético. Sentimentos que iam embora em meus dentes, em minhas mãos, gritos, grunhidos, desespero, dor, beleza, prazer... Meu olhos ardiam sempre, e tudo era vermelho, vil, magnânimo, como um véu vermelho, como sangue. Meus olhos vertiam sangue, meu queixo tremia, minhas mãos agiam depressa, meu coração pulava...
Eu bebia vidas, ceifava e me alimentava delas. E me tomam por criminoso, quando nenhum criminoso neste mundo seria capaz de fazer o que eu faço, de maneira tão inigualável, e de forma tão sagrada... Satisfaço uma necessidade, assim como você come e bebe."

Continua. No fim da tarde veremos o fim desse conto.

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