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Nove pancadas



Nove pancadas impiedosas. Misericórdia morreu, compaixão apodreceu, piedade se decompôs no chão violado e impuro. Nove pancadas.

O primeiro golpe foi desferido. Ecoou pouco antes da meia-noite. A escuridão do coração do perverso não seria tão tenebrosa quanto aquela noite, envolta em neblina, frio e umidade pegajosa. O cheiro da cidade era nauseabundo, uma mistura de fezes, carne podre e mofo, além do cheiro de suor alcoólico que emanava dos mendigos estirados nas calçadas. O silêncio reinava invicto, e nem mesmo os gatos ousavam desafiá-lo. Os postes de luz tingiam a neblina com suas luzes amareladas, dando à atmosfera um aspecto doentio e nocivo.

O silêncio da noite foi quebrado pelo som de passos. Caminhando calmamente, batendo os sapatos novos contra o calçamento de pedras, vinha um jovem bem vestido, de aspecto respeitável, contrastando com a imundice daquelas ruas. Ele sorria, com as mão nos bolsos, destoando do universo escuro e pestilento ao seu redor.

Segunda pancada foi ouvida. Som oco e seco, acompanhado de um grito de dor. O algoz se preparou para mais um ataque, num turbilhão de sentimentos infernais, insanidade e violência numa fusão sublime e maligna.

O jovem estava feliz, cheio de motivos para tal. Sua vida tomava um rumo delicioso, pois seus estudos já estavam quase no fim, o que possiblitaria o início de uma carreira louvável, e ele seria o orgulho da família. Sorria, também, porque o pai de sua amada acabara de dar permissão para que os dois se unissem em matrimônio. Brilho da alta sociedade, cabelo alinhado, terno impecável e chapéu coco para enfeitar ainda mais um rapaz dedicado e amado, mas repleto da futilidade típica da classe à qual pertencia. Seu andar despreocupado e feliz era uma ofensa à cidade suja, e a calçada gritava a cada passo, exigindo sangue.

Terceiro golpe, crucial. Tão doloroso quanto os outros, preciso e cheio de força, acompanhado por um grunhido do carrasco noturno. Um cachorro latiu, uma cortina se moveu, e olhos distantes puderam vislumbrar um sorriso na face desconhecida do impiedoso. Sorriso ou esgar de ódio, não se pode dizer.

Desviando das poças de lama que a chuva deixara, o rapaz quase saltitava pelas calçadas fétidas, agitando no ar insalubre o seu casaco imaculado. Barba bem feita, evidenciando o sorriso em seu rosto jovial. "Uma esmola, meu senhor" pediu um mendigo em seu caminho, deitado na sarjeta, mais sujo que a própria rua. "Uma esmola para o pão", e uma moeda saltou da mão do jovem. Ele sabia que aquela moeda jamais seria gasta com pão, e se tornaria uma dose de álcool antes que o Sol nascesse, mas não se importava. Não hoje.

Quarta pancada na neblina amarelada. Tantas lembranças surgiram na mente da vítima, numa velocidade estonteante. Parte de sua consciência soube que sangue brotava do ferimento, na parte detrás de sua cabeça. Impiedoso, o algoz continuou, agora com mais vigor, ao perceber o líquido vermelho na luz fraca. Seu hálito pútrido alcançou as narinas do condenado, que num instante quase eterno, aguardando a próxima pancada, sorriu dentro de si mesmo. "Vejam só!", observou ele, "Ainda existe tempo para uma futilidade.".

Impossível descrever o que sentia o rapaz. A cidade imunda e doentia era para ele um lugar brilhante, tranquilo. O silêncio sepulcral soava pacífico, a noite de descanso que os habitantes saudáveis mereciam. O mal cheiro já era parte do dia-a-dia de todos, as ruas enlameadas não causavam espanto e a neblina costumeira havia perdido o aspecto obscuro de sempre. Seus olhos ignoravam as deformidades e só viam beleza em tudo.

Quinta pancada. Ventos que sopram do Norte varreram absolutamente tudo o que havia na mente da vítima. Seus olhos se fecharam lentamente, num ápice doloroso, danoso, penoso, num clarão especial, distante e próximo, agradável e indesejado. Olhos azuis foram a última coisa que ele viu. Olhos azuis de uma moça bela e feliz, olhos cheios de esperança. Ou seriam olhos de fúria? Olhos cheios de voracidade, olhos do carrasco maldito, do homem que o golpeava com uma bengala. A cartola e a gola do casaco erguida mantinham o rosto oculto, mas os olhos pareciam brilhar como estrelas no céu escuro. Na luz amarelada, alguém viu a vítima sucumbir emitindo mais um grito, mais próximo de um gemido.

A sola nova e dura do sapato do jovem noivo golpeava o chão, ecoando nas paredes dos velhos prédios. Cabeça erguida, caminhando com vigor, com os pensamentos voando numa velocidade estonteante. Tantas coisa para preparar, tantos planos para serem postos em prática e tanta alegria pulsando no peito, percorrendo as veias como cavalos selvagens. Não prestava atenção no caminho, virava nesta ou naquela esquina sem se preocupar, pois, naquela noite, nada poderia perturbá-lo. Ele estava tão eufórico em seus sonhos perfeitos que não ouviu os passos que o seguiam, se aproximando cada vez mais.

Sexta pancada. O som de algo duro que se quebra, pedra que se parte, madeira a rachar, cerâmica golpeada... O corpo caído no chão tremeu em convulsão por alguns instantes, e um suspiro derradeiro escapou por sua boca. Por fim, acomodou-se no chão lamacento e o assassino grunhiu.

Noite fria. O ar se condensava ao ser expirado pelo rapaz. Assim também ocorria com a figura lúgubre que o seguia de maneira furtiva, sempre mais próxima, projetando sua sombra avantajada nos paralelepípedos imundos. Um passo mais forte, um som mais agudo, e o jovem percebeu que não estava só. Lentamente ele foi voltando à realidade suja, e lembrou-se de que aquela parte da cidade era perigosa durante a noite. Percebeu também que a neblina era forte e que os lampiões dos postes traziam pouca luz. Ao seu redor ele não podia ver ninguém, apenas portas fechadas, pois a cidade dormia, ou estava morta, com o olhos fechados, como um cadáver. Seu sorriso apagou, e ele olhou para trás rapidamente.

Sétima pancada. Madeira contra ossos e carne. Sangue espirrou ao redor, salpicou o casaco do carrasco, manchou a gola branca da camisa da vítima, já sem vida. Em seu rosto uma careta que expressava sofrimento e dor, olhos sem vida cheios de surpresa e medo. Olhos onde ainda se via o frescor de uma vida que nunca mais poderia acontecer. O assombro toma conta da alma na janela, enquanto o agressor ainda arde de ódio. Mais um rosnado cheio de desprezo, e ele se arma para mais um golpe.

O perseguidor não diminuiu o passo quando percebeu que o jovem conhecia sua presença. Manteve o passo suave e acelerado, com o casaco esvoaçando na neblina funesta. A cartola alta sobre os ombros largos e a bengala longa denotavam alguém de bom gosto. O rapaz já não sorria mais, pois sentiu que aquele homem emanava algo de ruim, como se suas más intenções impregnassem o ar ao seu redor. Apreensivo, ele acelerou o passo, de maneira sutil, para não chamar atenção.

Oitava pancada. Na janela, alguém se espantou ainda mais. A vítima já estava morta, imóvel, mas o assassino continuou a bater. Cada golpe fora violento, brutal, espalhando ódio por tudo. Cada batida ecoou pelas paredes ao redor, numa demonstração de furor que transformou o ar em agonia completa e estarrecedora. Na janela, as entranhas reviraram ao presenciar aquele crime, tão cruel e violento.

Sem conseguir conter as próprias pernas, o jovem apressou o passo. Andava cada vez mais rápido, cortando o nevoeiro denso e sentindo o coração bater cada vez mais rápido, ma os passos do homem de cartola também ficaram mais rápidos, e sua respiração se tornou audível, expelida entre os dentes cerrados. Ao olhar para trás o rapaz viu que o desconhecido estava bem mais próximo, mas não conseguiu ver seu rosto por causa da gola alta de seu casaco. Corpulento, contra a luz amarelada ele formava uma sombra agourenta e ameaçadora, agitando sua bengala a cada passo. O jovem começou a correr, e assim fez o perseguidor. Com suas pernas longas e ágeis, logo alcançou sua presa, que, aterrorizada, emitiu um gemido de medo e resignação. A caça acabou.

Nona pancada. O som de carne sendo esmagada fez a pessoa na janela sentir náuseas. A bengala se partiu em dois, tamanha a força do golpe. Frustrado, o assassino jogou para longe o pedaço de madeira que restara em sua mão, e com um grunhido chutou o chapéu coco da vítima. Tirou a cartola da cabeça, e ajeitou os cabelos. Recolocou o chapéu e respirou fundo. Tremia. Então começou a caminhar ao redor do corpo do rapaz, estirado na rua imunda. Deu uma volta completa até chegar perto de seu rosto para desferir uma cusparada cheia de desprezo e nojo. Depois deu as costas e, calmamente, foi embora na neblina.

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14/10/2011

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