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Crônicas do Ranzinza: Bom dia azedo


Eric olhava ao redor e tinha vontade de bater em alguém. E gente para servir de saco de pancadas não faltava ali. Ele nunca imaginara que tanta gente poderia caber em um espaço tão pequeno.

À direita havia uma senhora baixinha e de corpo avantajado, pressionando suas costelas com o ombro. "Velha folgada, onde já se viu!", resmungava ele em pensamento.

Atrás estava um menino de uniforme escolar, boné grande na cabeça, fone de ouvido soando tão alto que era possível reconhecer a batida de hip-hop, e a mochila avantajada nas costas. Aquilo deixava Eric espumando de raiva, afinal se ele tirava a própria mochila das costas e a colocava no chão, entre as pernas, para não incomodar ninguém, por que o menino ali não podia fazer o mesmo?. "Quem esse moleque de merda pensa que é para usar essa porcaria de mochila, que mais parece um pára-quedas, nas costas? Olha o tamanho disso! Caberia mais uma pessoa nesse espaço! Será que ele pagou a passagem da mochila também? Que desaforo!" Assim, cheio de raiva, Eric jogava o próprio corpo contra o menino a cada curva.

À esquerda estava uma moça bonita, bem vestida, cujo perfume vencia todos os outros cheiros que se propagavam por aquela parte do ônibus. Mas a cada movimento do veículo ela mudava levemente de posição, mexendo os pés, e pisava no pé de Eric. "Mas que coisa! Presta atenção, patricinha lazarenta! Acho que vou começar a pisar nesse seu pé mimado também. É o que você merece, por usar esse perfume enjoativo dos infernos!"

Sentada à sua frente estava uma senhora, aparentemente religiosa, que fazia cara feia para a sua camiseta de banda. "Quem ela pensa que é pra ficar me olhando torto desse jeito?"

E ao lado da senhora estava uma garota, com uniforme de escola, igual ao menino da mochila, e ela ficava encarando a capa do livro que Eric segurava com a mão esquerda. Com a direita ele se segurava ao balaústre, se esforçando para se manter de pé. "Olhando o quê? É um livro, ó! Nunca viu?"

Manhã difícil para Eric, mas ainda podia ficar pior. E ficou. Em certo momento, ao virar à esquerda, o ônibus parou. À frente havia uma descida, não muito íngreme, e lá embaixo, depois de uns trezentos metros, um cruzamento, onde havia três carros parados, com algumas partes da lataria amassadas, e alguns cacos de vidro estavam espalhados no asfalto. Não parecia ser algo tão sério, mas os três motoristas estavam gesticulando como loucos, e alguns policiais tentavam apaziguar. E entre este pequeno acidente e o ônibus de Eric existia uma fila de carros, brilhando ao Sol naquela manhã de Outono.

Eric não percebeu imediatamente, pois havia voltado para a sua leitura, mas mantinha o cenho franzido, por via das dúvidas. Levou alguns minutos para perceber que o veículo estava parado. Olhou ao redor para ver o que acontecia, e então sua vista deitou sobre a fila de carros.

Quando uma fagulha mínima acende um pavio curto de um barril de pólvora, o instante que antecede a explosão é carregado de silêncio, exceto pelo chiar do estopim. Em instantes como esse, a vida corre veloz na mente de uma pessoa, o ar pára, o tempo congela, a respiração faz uma pausa, e até mesmo o coração se prepara para a onda de calor que virá, junto com um impulso forte e um estrondo violento. Qualquer pessoa diante de uma situação dessa passa por estes instantes de suspensão temporal e mental, e por muito mais, certamente. E foi assim que Eric processou a visão da fila de carros. Como se ele fosse o barril de pólvora, cujo pavio curtíssimo fora aceso, e o tempo que ele levou para compreender que estava preso em um engarrafamento, justamente naquela manhã terrível, foi o tempo que sua mente levou para processar a visão da fila e do acidente.

“Ah, não acredito! Simplesmente não acredito! Merda! Merda de dia, de ônibus, de idiotas! Tinham que bater justamente aqui? Aqui? Parece combinado! O Eric levantou de mau humor, vamos ferrar ainda mais o dia dele com uma batida! Parece brincadeira! Inferno!”

Ele olhou para um lado, para o outro, balançou a cabeça, e depois novamente. A moça ao lado tornou a pisar em seu pé, mas sua raiva repentina fez com que ele nem reparasse nisso. Tampouco percebeu quando o ombro da senhora à direita o atingiu mais uma vez. E no aperto do ônibus sua frustração matinal aumentava vertiginosamente.

Detestava se atrasar, e agora chegaria atrasado ao trabalho. Detestava muito aperto, bagunça, muita gente no mesmo lugar, e aquele ônibus era o cúmulo da superlotação. Detestava estar no meio de um problema e não poder ir lá e resolver pessoalmente. Sua vontade era ir até o cruzamento, levantar os carros amassados, e jogá-los na calçada.

Não conseguiu mais se envolver na leitura, pois estava irritado demais com a fila, que não andara nenhum centímetro sequer, e já estavam lá há mais de dez minutos.

Quinze minutos. Ele lia e relia o mesmo parágrafo sem prestar atenção. O moleque da mochila se virava para olhar a fila, e a tal mochila empurrava Eric para frente. Aconteceu uma vez, aconteceram duas vezes. Na terceira, ele se virou, com dificuldade, e encarou o menino, que ficou visivelmente embaraçado diante de seu olhar maligno. O mesmo aconteceu com a moça do perfume, que ao se apoiar na perna esquerda, pisou mais uma vez no pé de Eric. A senhora religiosa exclamou para a menina com roupa de colégio: “Só Jesus para ajudar a gente mesmo! Meu senhor, eu tenho perícia de INSS pra fazer, e esse engarrafamento aí! Parece trabalho do Coisa Ruim!”. Aquilo fez Eric praguejar ainda mais em sua mente. “O que deus, o diabo ou Jesus têm a ver com um engarrafamento aqui? Como se o Diabo fosse sair da casa dele dizendo ‘Ah, vou lá foder com a vida daquela turma, vou causar um engarrafamento, eu sou muito mal, cara!’”

Vinte minutos. O ônibus deu um tranco repentino, e parou, processo que se repetiu inúmeras vezes depois disso. A polícia havia conseguido tirar dois dos carros do meio do cruzamento, mas um deles ainda estava lá, de modo que os carros passavam aos poucos, e bem devagar.

Tranco, o ônibus se movia, parava. Alguns minutos e um tranco, o ônibus andava mais alguns metros e parava. Lentamente, como se o motorista contasse cada metro percorrido. Ao longo da fila algumas buzinas se faziam ouvir. O rapaz de boné no carro ao lado batucava o volante com os dedos, ao som de algum pagode que Eric desconhecia. E no carro detrás, uma mulher levava seus filhos para a escola, todos uniformizados e agitados no banco de trás do sedan, olhando às vezes para o ônibus com uma expressão de deboche. Tranco, alguns metros, pára.

Quarenta minutos que foram como uma eternidade para Eric, que não conseguia se concentrar na leitura, que se zangava cada vez mais com as pessoas no ônibus, que estava inconformado com seu azar naquele dia.

“Sinceramente não entendo! Essa gente pega esse maldito ônibus todo dia, assim como eu, e mesmo assim nenhum deles aprendeu como andar de ônibus!”

Ele foi praguejando contra tudo e todos até o momento em que eles finalmente alcançaram o cruzamento. O guarda de trânsito sinalizou e o motorista acelerou. Estavam livres do congestionamento. Mas isso não acalmou os nervos de Eric. Era como se todo mundo naquele ônibus fosse culpado pelo acidente que os atrasara. Como se todo o sistema de transporte público daquela cidade fosse culpado. Como se todo o sistema viário do estado fosse culpado. Como se o mundo fosse culpado. Como se o universo inteiro fosse culpado. Se uma mosca pousasse muito perto de Eric naquela manhã, certamente ele a culparia por estar mal humorado.

E com um atraso de mais de uma hora ele chegou ao seu destino. Quase duas horas dentro daquele ônibus, quando normalmente ele não levava mais de quarenta minutos para chegar ao trabalho.

Carrancudo feito um bulldog que foi acordado cedo demais, raivoso como um cão de rua que cuida de um osso, ele subiu as escadas batendo o pé com força. Já no escritório, chegou a sua mesa e jogou a mochila com força na cadeira.

- Bom dia - disse seu colega ao lado.
- Bom dia - rosnou Eric. E aquele foi o “bom dia” menos azedo da semana.

Comentários

  1. Ih... às vezes meu dia começa bem assim. será que sou ranzinza também e não sabia? haha

    Gostei da crônica!

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  2. Hehehe!
    Muito obrigado, Camila!

    É, todo mundo tem um pouco de ranzinza, mas alguns são profissionais na arte de odiar o mundo por pequenas coisas.
    Isso rende algumas histórias interessantes, hehe!

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