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Tijolo após tijolo

O homem trabalhava calmamente no porão da casa velha. Não se incomodava com o cheiro forte de mofo, mas de vez em quando sua renite o fazia espirrar e coçar o nariz com a parte de trás das mãos. Lá fora a chuva ainda caía, insistente, e as nuvens escuras traziam uma noite precoce, embora a tarde ainda estivesse na metade.
Com a colher de pedreiro ele ajeitava a massa sobre os tijolos, enfileirando o próximo com cuidado. A lentidão de seu trabalho denunciava sua falta de habilidade com aquele tipo de tarefa, mas a consistência da massa e o esmero ao assentar cada tijolo demonstravam que ele estava se esforçando para fazer um trabalho decente.
A parede, formada por blocos de concreto, foi surgindo lentamente num canto do porão mal iluminado. Era um espaço pequeno, com pouco mais de um metro quadrado, uma dessas sobras de espaço que ocorrem em construções mal planejadas.
De tempos em tempos ele verificava a verticalidade da parede com um prumo. Também usava um nível em cada fileira para saber se elas estavam ficando uniformemente horizontais. Era algo sério. Ele queria que a parede ficasse perfeita. No fim ele a chapiscaria para depois, talvez no dia seguinte, rebocar, para deixar o trabalho impecável. Provavelmente pintaria se ainda estivesse inspirado a trabalhar.
O cigarro no canto da boca chegou ao fim. O maço estava sobre a mesa, ao lado do vidro de clorofórmio. Acendeu mais um, deu uma tragada firme, lenta e suave, enquanto olhava em volta. Era um ótimo lugar. Encontrara todas as ferramentas ali mesmo, que estavam empoeiradas num canto há alguns anos, coisas que o antigo dono deixara ao se mudar. Também havia um rádio velho, que ele testara por curiosidade antes de começar a assentar a parede, e que ainda funcionava, mas ele preferiu trabalhar em silêncio, numa quietude quebrada apenas pelo som constante da chuva lá fora.
Voltou ao trabalho, calmo como um lago num dia sem vento. Vez ou outra uma expressão de tristeza passava por seu rosto, e em dado momento seus olhos chegaram a ficar marejados, mas sempre que isso acontecia ele se endurecia, como se não quisesse deixar a emoção tomar conta de sua consciência, e trabalhava com mais vigor e capricho, como se respondesse a um desafio interior.
A calma do lugar foi quebrada pelo som da campainha, e a preocupação surgiu em seu rosto. Ele largou imediatamente a colher e a desempenadeira no carrinho de mão cheio de massa e colocou o cigarro sobre a última fileira de tijolos, na altura de seu peito, e deu uma última espiada para o seu trabalho. Subiu as escadas com passos firmes, um tanto irritado e resmungando por dentro. A casa estava tão escura quanto o porão, exceto em alguns lugares onde a luz fraca e cinza do dia passava por uma cortina fina. A campainha soou mais uma vez, e ele adiantou o passo para chegar ao hall de entrada, decorado com um vaso velho onde uma planta jazia seca. Abriu a porta e encarou uma senhora simpática que era sua vizinha, e fez questão de ser antipático.
— Olá. — disse secamente.
— Oi, Olavo! - disse ela sorrindo. — Acabei de chegar do trabalho e encontrei uma correspondência para você no meio das minhas. O carteiro deve ter misturado as coisas.
— É, deve sim. — Ele estendeu a mão e pegou o envelope, que aparentemente era mais uma conta qualquer. — Obrigado. — E já ia fechando a porta quando a vizinha interrompeu.
— E a Silvana? Faz dias que não a vejo. Como ela está?
— Ela está viajando. Na casa da mãe dela.
— Ah, sim. E onde fica?
— Curitiba. — respondeu ele depois de pensar um tempo.
— Ah... Bom pra ela. É uma cidade bonita. — comentou a mulher, começando a ficar sem graça com a rispidez de Olavo.
— É.
— Bom, — continuou a vizinha depois de um instante de silêncio. — vou lá. Diga a Silvana que eu mandei um abraço!
— Direi. Até mais.
E sem esperar resposta, Olavo fechou a porta. Girou a chave duas vezes, consciente de que a mulher ainda estava ali, e por isso esperou até ouvir os passos dela indo embora. Voltou ao porão e continuou trabalhando, fumando e pensando nos acontecimentos que o fizeram chegar até ali. Subitamente uma canção começou a ecoar em sua cabeça, uma peça que sua memória pregava, uma ironia, uma música cuja letra falava de "pedra por pedra, você se torna minha parede". "Cada pedra é uma lágrima, e você nunca mais irá embora", era o verso que se repetia, insistente.
Os blocos continuaram a ser empilhados, e mais cigarro foi aceso. A luz do dia, que já era pouca, começou a desaparecer por completo, e a noite verdadeira chegava mansa e resoluta. Quando a última fileira estava sendo assentada, ele ouviu um choro tão baixo que quase desaparecia por causa do som da chuva, que agora caía mais forte. Nesse momento ele quase derrubou a parede recém construída, e lembranças amorosas ou voluptuosas atravessaram sua mente, um instinto natural e incontrolável que corria como se fosse um corcel selvagem. E essa cavalgada repentina o fez se lembrar dos motivos para aquela parede, e de novo Olavo se endureceu, preparado para terminar o serviço.
Ao assentar o último bloco, que, meticulosamente, se encaixou entre a parede e o teto, ele jogou a ponta do cigarro no chão e se afastou com as mãos na cintura, observando o trabalho. "Nada mal para um amador!", pensou. E então um grito soou. Um grito de mulher, berrando desesperada, rugindo feito um animal ferido e acuado. Berrava o nome dele, e golpeava a parede, que chegou a tremer, mas ele sabia que não cairia. Ela gritava com todas as forças, e proferia maldições audíveis entre lamentos e sons engasgados.
— Não adianta, Silvana. — disse Olavo, baixo demais para que ela pudesse ouvir. — Ninguém vai te ouvir gritar.
Com o rosto triste ele se lembrava da canção que martelava em sua cabeça, sem parar. "Pedra após pedra!". Ele limpou as ferramentas, cuidadoso. A parede havia ficado bonita, e quando ele a rebocasse ficaria perfeita. A água tirava os restos de massa da colher e da desempenadeira, e ele estava satisfeito por não ser obrigado a tirar sangue das mãos. A voz de Silvana ainda soava, esganiçada, desesperada, enlouquecida.
O resto da massa foi jogada em um balde velho. Olavo subiu as escadas e conteve-se quando sua mão se moveu em direção ao interruptor da luz. "Não preciso apagar, ela já tem escuridão o suficiente para lhe fazer companhia", pensou.
Fechou a porta, foi à cozinha e colocou um pouco de café sem açúcar num copo qualquer. Por um instante se perguntou quanto tempo ela levaria para morrer, pensando na fome, na sede, nas dores, na urina e nas fezes. No fim, seus pensamentos foram se distanciando, sentado na cozinha silenciosa e escura, com aquele café quente e amargo descendo pela goela, e os versos ainda se faziam ouvir em sua mente, "Cada pedra é uma lágrima, e você nunca mais irá embora".

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