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O olho gordo e o Opala

Victor (VM7)

Nunca entendi muito de carros, mas sempre apreciei o Opala. Modelo maravilhoso, sempre presente nos corações daqueles que admiram a boa arte do design automobilístico. É o tipo de carro que arranca suspiro das pessoas, com seu ronco cavernoso, curvas elegantes, demonstrando o melhor que a indústria dos anos 70 tinha a oferecer. Não há como deixar de observar quando ele passa, é impossível ignorar.

Por conta desse magnetismo intrínseco do Opala, cometi um pecado que nunca sonhei  cometer. Era noite, fim de inverno, e lá estava eu, caminhando para a faculdade, templo de conhecimento e pensamentos suicidas, quando me deparei com o beberrão mais belo que o Brasil já viu.

Estacionado na avenida, bege como café com leite, duas portas, traseira monumental enfeitada por faróis redondos e vermelhos. As luzes dos postes destacavam as curvas com linhas brilhantes, ofuscando os carros ao redor. O esmero do proprietário era evidenciado pela limpeza, a pintura imaculada, lataria perfeita, pneus mais pretos que o asfalto que os sustentava.

Quem é antigo como eu deve se lembrar de uma certa peculiaridade dos anos 90: chiclete vinha com figurinhas de mulheres seminuas, na versão mais barata de soft porn de que se tem notícia (era três por dez centavos). A piazada ficava reunida, comentando as fotos minúsculas com risos idiotas, em vozes que sequer haviam alcançado fase “taquara rachada” da pré-adolescência. Foi assim que eu me senti quando observei aquele Opala, belíssimo na noite paranaense.

Diminuí o passo, me inclinei para o lado, quase quebrei o pescoço para apreciar cada centímetro daquela maravilha automobilística. “Um dia terei dinheiro para custear uma besta dessas”, pensei, imaginando quantos litros de gasolina ela bebia por metro. Me vi num futuro fantasioso, tirando o Gol Bolinha da garagem e guardando o Opalão, deixando o motor ligado por alguns instantes só para ouvir o som do motor, semelhante a um gargarejo metálico; eu entraria em casa, feliz como mosca no lixo, chacoalhando as chaves diante do rosto horrorizado da esposa.

Meus devaneios chegaram ao fim quando, com um rugido quase brincalhão, o carro despertou. Os faróis acenderam e eu me assustei, pois não tinha percebido o motorista dentro dele. Meu rosto esquentou, e apressei o passo com os olhos voltados para a calçada.

Senti aquele tipo de vergonha tola, injustificada. Não importa se o motorista me viu observando seu carro, ou se ele achou engraçado o modo como que quase parei para babar na beira da calçada. Eu nunca mais o veria. Mesmo assim, evitei olhar na direção do ronco do motor quando ele partiu avenida acima, e só encontrei paz quando pensei no quanto aquele motorista deveria adorar ver as pessoas entortando o pescoço para ver seu carro passar.

Na faculdade, entre risadas e fumaça de tabaco, contei aos amigos sobre o caso do “Opalão nervoso que eu acabei de ver”. Rimos muito, trocamos ideias sobre os veículos clássicos que povoam nossos sonhos úmidos, e a vida acadêmica seguiu, miserável e ingrata como sempre.

No dia seguinte, estava eu a caminhar novamente, subindo os morros da cidade que nunca dorme, quando me deparei com uma cena que fez meu peito encolher, como se a caixa torácica quisesse espremer meu coração. Numa pequena oficina, lá estava aquele mesmo Opala, com o capô aberto. Sobre seu motor glorioso havia um homem de macacão azul. Aliás, deixo aqui o questionamento: existe uma Convenção Nacional dos Mecânicos? Se sim, o uniforme azul escuro é obrigatório? Tema para outro texto.

Voltando ao Opala, lá estava ele, frágil como um leão deitado numa maca, sendo examinado pelo veterinário. A oficina era como um centro cirúrgico, no qual aquele paciente passava por uma operação séria e delicada. O mecânico detinha o poder sobre aquela existência, suas ferramentas faziam vezes de bisturis, e as manchas de óleo no chão de concreto... não falemos das manchas de óleo.

Mas o que mais me marcou, e me motivou a escrever este texto, foi a culpa pelo pecado aludido lá no segundo parágrafo. Eu soube, naquele instante, que eu era o responsável pelo procedimento que estava em curso naquela oficina. Eu havia causado aquele prejuízo, havia posto em risco a integridade do Opala. Eu havia jogado sobre ele um olho gordo.

E um baita olho gordo. Uma secada tão mortal que, no dia seguinte, o enviou ao centro cirúrgico. Nunca imaginei que um dia eu seria o invejoso, aquele que é capaz de causar problemas apenas com o olhar desejoso.

Cheio de remorso eu segui rumo à minha casa. Quando a oficina havia ficado uma quadra lá para trás, numa casa simpática de portão de grade eu vi outra belezura daquelas. Comodoro, linhas um pouco mais retas, mas sem tirar dele a elegância. Era azul escuro, parecia engolir o excesso de luz que vinha do céu naquela tarde. Antes que o encanto sereiano daquela máquina me pusesse num novo transe invejoso eu virei o rosto. Me recusei a causar aquela dor a outra pessoa.

Em casa, não comentei o caso com ninguém. Passei o resto do dia pensando se deveria ir à oficina conversar com o mecânico, para saber se o caso era sério. Talvez pedir o telefone do proprietário do veículo, para ligar pedindo desculpas. Imaginei a conversa.

— Alô?
— Alô, é o Sr. Fulano?
— Eu mesmo.
— O Sr. Fulano, dono de um Opala bege?
— Ele mesmo. Quem está falando?
— O senhor não me conhece. Eu sou a pessoa que estragou seu carro.

Silêncio.

— Ontem eu passei ao lado do seu Opala, na avenida. Ele estava tão bonito! Não resisti, eu dei uma secada nele! Me perdoe!
— Do que você está falando, cara? Como você sabe que eu tenho um Opala? Quem te deu esse telefone?
— Não fique tão bravo, eu só liguei porque não consigo mais viver comigo mesmo! Eu joguei olho gordo no seu carro!
— Velho, que besteira é essa?
— Eu vi ele hoje, na oficina do Sr. Ciclano! Me sinto péssimo!
— Eu levei o carro lá para regular a embreagem, faz dias que ela está ruim. Para de falar bobagem!
— Eu me sinto responsável! Vamos marcar uma cervejinha, eu pago a bebida para compensar. Eu sei que não cobre a despesa da oficina, mas é tudo que eu posso oferecer!
— É cada uma!

Fim da ligação.

Eu jamais ligaria para o Sr. Fulano. Mas por dias a culpa me assombrou, e para me livrar destes pensamentos escuros eu escrevi este texto. Que todos saibam que eu lancei o olho gordo num Opala de respeito, e peço desculpas à sociedade por isso. E Sr. Fulano, se estiver lendo esta crônica, saiba que a latinha de cerveja com um galho de arruda colada com durex, que estava sobre o capô do Opala quando o senhor foi à oficina retirar o veículo, foi deixada por mim. Desculpa.

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