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A promessa

Steve Johnson
A fumaça do cigarro saiu pelas narinas de Augusto, dançando no ar frio da tarde. Ele ignorava as pessoas que se apressavam pela praça, assim como elas não percebiam sua presença.

O dia sumiu e a noite trouxe o cheiro de quentão, vindo da feira de inverno. Os apressados deram lugar aos passeantes, interessados nas comidas típicas, nas lembrancinhas, no conteúdo das barracas. Porém, na cabeça de Augusto só havia espaço para um único pensamento, algo sombrio que ele tentava ignorar.

Caminhou entre a alegria dos outros, pelas ruas largas onde a vida noturna começava a despertar. Jovens como ele seguiam no sentido contrário, em direção à parte velha da cidade, camisetas de bandas e jaquetas de couro; moças se escondiam nas sombras com vestes insinuantes que desafiavam a baixa temperatura e o vento cortante; botecos  estavam com portas abertas, seus frequentadores já de bochechas rosadas. Mas Augusto não viu nada disso.

Entrou no shopping, foi direto ao banheiro e lavou as mãos duas vezes, para eliminar o cheiro do cigarro. "Você andou fumando, Augusto?", perguntaria sua mãe. "Não lembra de como o câncer fez seu avô sofrer, menino? Nem dezoito anos você tem! Isso se não estiver usando droga! Você está usando droga?" Sua mãe não precisava disso, ele não precisava disso. O sofrimento em casa já era muito grande.

E pensando neste sofrimento, enquanto se pendurava na balaustrada do ônibus serpenteante, Augusto se perguntou: "Será que eu tenho mesmo que fazer isso? Será que eu vou conseguir fazer isso?". Observando o próprio reflexo no vidro da janela, misturado ao borrão de luz lá fora, ele se lembrou da dor que era chegar em casa e ouvir a voz triste da mãe dizendo "Deus te abençoe", e perguntando sobre como o dia dele havia sido. Ela sempre queria saber se ele tinha trabalhado demais, se o chefe o tratara bem, se ele usara luvas e máscara. "Fico muito preocupada com você nessa serralheria, morro de medo de você se machucar".

Há seis meses Augusto conseguira um emprego de meio período numa serralheria, como auxiliar. Recebia uma mixaria, mas já era alguma coisa. Pelo menos ele tinha seu próprio dinheiro, não precisava pedir pra a mãe, que ganhava tão pouco com a costura. Mas o mais importante era não depender de Afonso, que vivia dizendo "O Augusto custa caro demais!", o que era longe de ser verdade. O rapaz raramente saía com os amigos, sempre usava as mesmas roupas velhas, e apenas uma vez por ano precisava comprar novas canetas e cadernos para a escola, e isso tudo era pago pela magra pensão deixada pelo seu falecido pai.

Mas Afonso pagava o aluguel, as contas, e era o vale alimentação dele que trazia a maior parte da comida para a mesa. Augusto não tinha liberdade para fazer praticamente nada em casa. Qualquer coisa que desagradasse Afonso já era motivo para discussões acaloradas, e é por isso que o rapaz procurou um emprego, mesmo que sua mãe não concordasse. Apesar disso, ela sempre se interessava pelos relatos diários de Augusto. Ele percebia que a cabeça dela estava em outro lugar, com seus olhos cansados, não raro inchados de choro, fixos na máquina de costura.

E tudo isso pesava ainda mais na consciência de Afonso naquele dia. Passara a tarde na rua, vagando pelo Centro, sem rumo. Visitara suas praças favoritas, e comera uma coxinha para aplacar a fome. Não compareceu ao trabalho, disse para seu chefe que estava doente, e de certa forma estava. Sentia dentro de si os reflexos daquele pensamento assustador, que não queria ir embora. Há meses aquilo ecoava em sua mente, mas o dia anterior havia sido a gota d'água.

"Vale à pena jogar tudo para o alto? Imagina o que vai ser da mãe. Imagina o que vai ser de mim". Mas para Augusto, não fazer nada seria absurdo. Buscar o caminho correto não havia funcionado, e as coisas só pioraram depois disso. "Agora eu trabalho, tenho meu dinheiro, como um homem de verdade. Então é hora de agir como homem, que protege os seus".

O ônibus chegou no terminal cedo demais, e Augusto ficou parado no meio da multidão que ia e vinha. Ele se sentia como uma pedra pesada no fundo de um rio de correnteza forte; o mundo todo se desfazia em manchas ao seu redor, mas ele permanecia imóvel. Estava na fila para pegar o segundo ônibus de sua viagem, mas deixou o primeiro passar. Também ignorou o segundo, e por fim decidiu seguir o resto do caminho a pé, na esperança de que caminhar trouxesse pensamentos mais claros.

O portão de casa não tardou a aparecer diante dele. Augusto seguiu reto. Caminhou por várias quadras, andando em círculos pelo bairro escuro e calmo, observando as luzes das casas ao seu redor. Imaginava se naqueles lares a vida também era insuportável. Invejava os vizinhos. Certamente nenhum deles tinha que lidar com fantasmas tão grandes dentro de si.

Depois de passar pela porta de casa pela terceira vez, Augusto decidiu que deveria entrar. Não poderia continuar evitando aquilo. O coração batia tão forte em seu peito que parecia estar prestes a explodir, e ele podia ouvir o sangue sendo bombeado com força pelo seu corpo. Ao estender a mão para abrir o portão ele percebeu que tremia, e não era de frio. Destrancou a porta, largou a mochila no sofá.

Tudo era silêncio. A máquina de costura deveria estar ligada àquela hora, nada fazia sua mãe parar de costurar. Mas naquela noite a quietude e o escuro dominavam o pequeno sobrado. Augusto caminhou de cômodo em cômodo, acendendo as luzes, sentindo o peito ficar ainda mais inquieto. Sentia um medo que tornava sua respiração difícil, dava vontade de chorar.

A mãe não estava no quarto de costura, nem na cozinha, nem no quintal dos fundos. Augusto então encarou a escuridão da escada que levava ao andar de cima, com a mandíbula presa numa mordida vazia, tão forte que seus dentes pareciam prestes a se quebrar. Com o corpo pesado ele começou a subir, e cada degrau era um tormento que trazia ânsia de lágrimas que ele tentava segurar.

Eram apenas dez degraus, mais um patamar onde a escada fazia uma meia volta. A subida durou uma eternidade, durante a qual Augusto ouvia a própria voz fazendo uma promessa de ódio, algo que ele jamais esperara dizer na vida. Nesta lembrança, sua mãe chorava em algum lugar, enquanto Afonso lutava para se equilibrar em pé, ao mesmo tempo em que ria das palavras do menino. Era uma lembrança escura.

A tal gota d’água, despejada durante o jantar do dia anterior, veio na forma de mais uma discussão. Afonso, como sempre, proferia barbaridades contra Augusto, com o bafo etílico a se propagar pelo ambiente. A mãe defendeu o filho, o que provocou no padrasto um ataque de fúria, com direito a berros e xingamentos. As ofensas contra ela versaram sobre ameaças, e Augusto respondeu com um soco na mesa, que vibrou os pratos e trouxe silêncio.

Naquele momento os três moradores da casa se lembraram da promessa. Augusto a reiterou com os olhos, ao fulminar Afonso com toda a raiva que um ser humano pode sentir. Não ousaria proferir palavra, não diante da mãe, mas o recado tinha que ser dado. Afinal agora ele se sentia um homem, e homem tem que ter honra.

E a promessa ecoava a cada degrau, pesada como os pés de Augusto, como a vida naquela casa, como o ar que entrava difícil em seus pulmões e saía duro por suas narinas. No topo da escada ele acendeu mais uma lâmpada. Com um toque suave ele empurrou a porta entreaberta do quarto de sua mãe, e a viu deitada sobre a cama, no escuro, sua silhueta marcada na claridade fraca que entrava pela janela.

— Mãe?

Não houve resposta. Com uma mão apressada Augusto acendeu a luz do quarto e correu para a cama, e o que ele viu o encheu de sensações contraditórias. Nunca na vida ele sentira tanta dor. Dor por ver sua mãe com o rosto machucado, roxo, os olhos inchados e os lábios partidos; dor por saber que o monstro que fizera aquilo havia, um dia, sido uma boa pessoa para ela; dor por saber que ela amava Afonso de uma maneira cega, capaz de esquecer de si mesma e de seu filho, e se sujeitar à realidade dura do presente. Por outro lado, o coração de Augusto desacelerou, sua respiração voltou ao normal. Já não havia mais ponderações a fazer, e a atitude correta era agir como o homem que ele havia se tornado, e cumprir a promessa.

Com uma única lágrima nos olhos, Augusto beijou a testa de sua mãe, que dormia profundamente. Na cabeceira da cama jazia uma cartela de calmante, da qual faltava um comprimido. "Ela vai ficar bem", pensou, numa atitude que ele sabia ser egoísta, mas a honra de sua mãe era mais importante. A polícia ele sabia que de nada adiantaria.

Augusto voltou à sala, apagando todas as luzes em seu caminho. No escuro, ele foi até o portão e acendeu um cigarro. A mãe não acordaria tão cedo. Ali ele ficou, a observar a fumaça branca subir para o céu negro, numa mistura de tabaco e vapor de inverno. Quando a bituca atingiu o asfalto, ele se dirigiu à área de serviço, nos fundos do sobrado. Da caixa de ferramentas de Afonso ele pegou o martelo.

Era um martelo comum, nada de especial, mas desde que fizera a promessa, Augusto havia decidido que aquela seria a ferramenta correta. E então ele esperou, sentado no sofá da sala, no escuro, observando as luzes dos carros que lançavam sombras nas cortinas, tingindo a parede com variadas formas. Tudo era calma dentro dele, e todo o terror do dia havia desaparecido.

A promessa, proferida alguns anos antes, se repetia em sua mente, mas de maneira distante agora. Convenientemente ele ignorava o choro da mãe em sua lembrança, e só o que via era Afonso cambaleante, com os punhos avermelhados e cerrados, os dentes arreganhados numa risada de deboche. Afonso suava álcool, o odor de bebida impregnava a sala.

Naquele dia Augusto havia passado a tarde na casa de um amigo da escola, e ao voltar de noitinha deparou com a mãe encolhida num canto, o rosto machucado, enquanto Afonso, bêbado, disparava ofensas contra ela. Sem refletir, Augusto deixou a raiva falar.

— Se você encostar na minha mãe de novo eu te mato! Eu prometo que te mato!

E Afonso ria.

Agora Augusto só ouvia a própria voz infantil fazendo ameaças contra o esposo de sua mãe, enquanto os carros passavam cada vez mais raramente pela rua, até que, de repente, um deles parou na frente da casa. Uma porta se abriu. O som de chaves. O portão rangeu. O carro velho de Afonso entrou na garagem, o som era inconfundível.

A promessa se desmanchou, a lembrança desapareceu. Augusto apertou com força o cabo do martelo, e seu coração nunca esteve tão calmo.

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Comentários

  1. Bom dia.
    Gostei muito de ler seu conto, mas
    não entendi o final. Termina na chegada do Padrasto mesmo?
    Talvez cabe ao leitor terminar o fim do conto, com a morte ou não
    do padrasto?
    O que houve? Por favor, fiquei intrigada com o final, poderia me ajudar?
    Nossa, acho que o ser humano anda tão estressado que, bastaria um tom
    de voz mais alto para que, uma simples discussão se torne tragédia.
    Gostei do seu conto. Voltarei pra ler outros. Abraços

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    Respostas
    1. Olá Simone! O final é aberto mesmo, pois eu achei que não seria interessante retratar uma cena de violência como esta. Fica para o leitor imaginar, com base na personalidade de Augusto, se ele seria capaz de fazer justiça com as próprias mãos, se ele teria a capacidade de ir até o fim. Uma coisa é querer se vingar de alguém, e chegar a escolher uma arma para tal; se vingar de fato é outra coisa bem diferente, envolveria abrir mão da própria humanidade, e isso é algo terrível.

      Não sei se demonstrei bem isso, mas aprendemos um pouco mais a cada texto, e é por isso que seu comentário é importante! Fico feliz que tenha gostado, e que queira ler outros textos! Obrigado!

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