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Uma rosa roubada para Santa Terezinha


Alceu se levantou com dificuldade, tentando reprimir uma reclamação contra o genuflexório, aparentemente mais duro a cada missa. Apalpou os joelhos para amenizar as dores e ficou observando os detalhes da capela enquanto aguardava o início da celebração.

Diante do altar estava uma imagem de Santa Terezinha do Menino Jesus, cuidadosamente instalada pelas freiras sobre um estrado de madeira. Ao redor da santinha havia um grande número de rosas, aguardando a benção que viria ao fim da missa. Os únicos sons a romper o silêncio eram preces sussurradas ecoando nas paredes altas, e os folhetos que alguns usavam para abanar o calor intenso que outubro trouxe a tiracolo.

A quietude foi quebrada pelos estalos de passos apressados nas escadas da entrada. Sem fôlego, uma menina pediu bênção ao padre, que estava à porta, saudando os fiéis retardatários. Algumas pessoas se voltaram para ver de quem era a voz infantil, tão cheia de urgência e aparente cansaço. Alceu também se virou no banco, e o que viu fez brotar-lhe uma carranca raivosa no rosto idoso.

A menina era pequena, com a farta cabeleira negra toda espalhada pelos ombros, que suportavam as alças de uma mochila grande demais. Mechas estavam grudadas na sua testa, brilhante de suor, emoldurando um par de olhos grandes que olharam com um certo espanto para o interior da capela, talvez pelo fato de que tantos rostos sorridentes a estudavam com curiosidade.

Ela fez uma genuflexão profunda, colando o joelho no chão para fazer o sinal da Cruz. Com passos curtos ela caminhou pelo corredor central, com as sandálias estalando de forma escandalosa no granito. Se sentou perto do altar, e ali ficou chacoalhando as pernas.

Alceu a acompanhou com o olhar, cheio de rancor ansioso. Pois a menina trazia nos dedos uma rosa amarela, de pétalas fartas e talo longo e grosso, espinhos bem aparentes. Alceu conhecia a roseira que dera origem àquela flor: era uma de suas plantas. Ele morava do outro lado da rua, de frente para o mosteiro, e em seu jardim cultivava diversas flores, inclusive rosas. Mais que passatempo de aposentadoria, cuidar das flores era para Alceu uma espécie de terapia, que o ajudava a lidar com a solidão, e de vez em quando era fonte de renda. As rosas amarelas eram as favoritas dos compradores, pois elas eram de um tom vibrante, fora do comum, quase tão amarelas quanto girassóis.

Uma das freiras subiu ao púlpito, atrás das grades que as separavam dos demais fiéis. Começou a ler um texto sobre a santa celebrada naquele dia. Falou de sua família, dos desafios para entrar no carmelo, da vida santa terminada em doença aos vinte e quatro anos. Todos estavam absortos pelo discurso da irmã, até porque Santa Terezinha era muito popular na cidade; prova disso era o número de pessoas que haviam levado rosas para a missa, algumas vendidas pelo próprio Alceu, que, por ironia, não levara nenhuma.

Mas Alceu não ouviu quase nada. Tinha os olhos fixos na rosa amarela. Sua nuca enrugada se avermelhou, as sobrancelhas se tocaram. Sentia raiva. Ficou imaginando a menina pulando o muro de sua casa e ferindo suas preciosas flores.

O padre e seus auxiliares caminharam pelo corredor entre os bancos, e Alceu, em pé, fez o sinal da Cruz quando o Crucifixo passou diante dele. Se curvou para o padre e balbuciou trechos da canção entoada pelas freiras. Quando a missa começou, ele recitou as orações de forma automática, sem conseguir prestar atenção em palavra alguma. Só tinha cabeça para o desaforo da menina que lhe roubou uma rosa.

Durante as leituras ele reclamou em pensamento, como se estivesse arengando com um amigo à porta de casa. E nesses reclames, questionou sobre o paradeiro dos pais da menina; sobre o motivo de ela não estar na escola; sobre a falta generalizada de respeito, tão recorrente nos últimos tempos. Seus punhos estavam cerrados, o olhar violento alternando entre o altar e a rosa, vibrante na mão delicada da menina, que solenemente havia parado de chacoalhar as pernas suspensas no ar.

E depois de minutos de mero azedume ancião e indignação para com o ilícito cometido, os pensamentos de Alceu foram inundados por reflexões escrupulosas, que condenavam a criança pelo pecado. Achou uma afronta o fato de a rosa roubada ser levada à missa, o que o fez traçar críticas agressivas contra os esforços catequéticos das paróquias. Chegou a tergiversar sobre a índole duvidosa que teria aquela pequena católica quando fosse mais velha. Teceu condenações duras sobre o tipo de pessoa que ela se tornaria, e recitou orações pela Igreja, certo de que a qualidade dos fiéis minguava a cada geração.

Seu coração só amenizou estes sentimentos quando, no meio da homilia, o padre falou sobre os julgamentos pessoais, sobre o comportamento fariseu e a usurpação humana do papel de Juiz Supremo, que pertence a Deus. Se sentiu mau. Ele não era amargo daquele jeito, era apenas um senhor solitário. O Alceu costumeiro, compreensivo e caridoso, lutava contra o Alceu revoltoso, que se agitava por causa de uma mera flor.

E a batalha interna se prolongou ao longo da celebração. Ora ele argumentava que “não é pela rosa, mas pelo ato em si”; ora tentava aceitar que condenar uma criança pelo roubo de uma flor era de uma mesquinharia copiosa, e que aquilo era puro egoísmo de sua parte.

Na hora da comunhão, Alceu apenas se ajoelhou e rezou. Não se sentia bem em entrar na fila com o peito cheio de rancor. Essa foi uma pequena batalha vencida pelo Alceu bondoso de sempre, mas o amargo ficou satisfeito ao ver que a menina também não tomou parte na comunhão. Talvez fosse nova demais e ainda não pudesse comungar; ou talvez ela estivesse se sentindo culpada por ter roubado.

Ao fim da missa, antes da benção final, o padre chamou os fiéis para abençoar as rosas. A menina pulou do banco e se enfiou entre as inúmeras senhoras que se adiantaram. Alceu voltou a ruminar reclamações e sentenças condenatórias. Afinal, a rosa era roubada. Irritado, mal ouviu as últimas palavras do padre, fez o sinal da Cruz e uma última saudação ao sacerdote celebrante. Se curvou para o sacrário e saiu com os demais fiéis, os punhos ainda cerrados.

Parou no último degrau e ficou olhando a torrente de pessoas que deixava a capela, e entre elas vinha a menina, caminhando devagar, e com um sorriso satisfeito no rosto. A indignação era grande demais para conter o silêncio.

– Ô menina! Onde você conseguiu essa rosa?

A criança parou no meio da escadaria, medo estampado nos olhos enormes e negros, como jabuticabas de boa safra. Seus dedos magros chegaram a ficar brancos, tamanha a força com que segurava o talo da flor.

– Eu... Ah... Eu...
– A flor, menina! De onde você tirou essa flor? – A impaciência dominava as palavras do velho. A criança não o respondeu, mas os lábios tentavam pronunciar palavras que não vinham, se movendo inutilmente enquanto sua respiração acelerava. – Foi daquela casa ali, não foi?

Alceu apontou para o portão de grades do outro lado da rua. A menina fez que sim, bem devagar, com lágrimas brotando dos olhos, que pareciam ainda maiores.

– Eu sabia! Eu conheço as minhas rosas! E você? Não sabe que é errado roubar? Você pulou o muro?
– Pulei. – disse ela, bem baixinho. Caminhos de lágrimas se formaram nas bochechas avermelhadas.
– Mas é um absurdo mesmo! E ainda admite! É muita petulância!

Com um gesto rápido a menina enxugou uma de suas bochechas, deixando-a ainda mais vermelha. Encarou o velho enraivecido com culpa e tristeza no rostinho que parecia querer desaparecer entre os cachos do cabelo bagunçado. E resoluta estendeu o braço magro, quase atingindo a rosa no peito de Alceu.

– Desculpa. – disse com uma voz resoluta, mas trêmula pelo choro.

Antes que pudesse responder, ou mesmo pegar a flor, Alceu sentiu uma leve carícia em sua orelha. Uma mulher descia os degraus abraçada com um buquê de rosas exageradamente farto, e algumas pétalas roçaram as rugas do velho. Ele se virou, mas a mulher já havia saído de seu campo de visão, e seus olhos cruzaram com a face da Santinha, lá dentro da capela, entronizada no caixote de madeira.

Alceu era míope, e a idade trouxe catarata, para completar o deserto de sua vida. Dali ele mal conseguia distinguir todos os traços da face da menina que lhe estendia a rosa roubada. Porém, ele pôde ver em detalhes o rosto esculpido na imagem, a vários metros de distância. Se espantou com a semelhança entre a estátua e as fotos de Santa Terezinha, que ainda marcavam sua memória dos tempos em que enxergava melhor. Mas não teve tempo de apreciar a habilidade do escultor, pois o sorriso nos lábios da Santa apagaram dele toda a capacidade de raciocinar.

Ela sorria, uma curvatura suave e elegante na face bondosa. E os olhos dela estavam fixos nos seus. Parecia que ela estava prestes a falar, e se falasse diria “Alceu, acha mesmo necessária essa indisposição com uma criança por causa de uma rosa?”.

Os pêlos brancos dos seus braços se ergueram sobre as manchas senis. Ele quase conseguia ouvir a voz doce de Santa Terezinha o repreendendo, e a culpa veio mais forte que a raiva que o distraíra durante a missa. O Alceu bondoso gritava a dentro dele: “Isso, minha Santinha! Eu passei a missa inteira falando, mas ele não me ouvia! Fala pra ele, Santinha! Fala pra ele!”

– Toma. Pega a rosa. – disse a menina agitando a flor.

Alceu a olhou assustado, como se tivesse se esquecido de sua presença. Voltou-se de novo para a Santa, mas não pôde ver seu rosto; era tudo uma mancha de cores sem traços perceptíveis. Ele pigarreou, não apenas para limpar a garganta, mas para incentivar a voz envergonhada a se manifestar.

– Não precisa devolver.
– Mas eu roubei. Me desculpa. Pega de volta.–Não quero. Eu desculpo. – disse Alceu, sentindo que ele próprio deveria pedir desculpas.
Os dois se encararam por alguns instantes, embaraçados demais para falar qualquer coisa. O braço da menina retraiu, aceitando a rosa, agora propriamente sua.

– Não é certo entrar assim na casa dos outros. – disse o velho, medindo com cuidado o tom da própria voz para não assustar a menina.
– Eu sei...
– Então por que fez?
– Não tinha onde comprar.
– E por que não pediu? Era só bater palmas.
– Eu bati, mas ninguém atendeu.
– Mas isso não justifica.
– Eu sei mas é que... Era urgente.
– O que pode ser urgente pra te fazer pular um muro?
– Eu precisava de uma rosa pra ser abençoada!
– Era só vir na missa da tarde. Aí você comprava uma rosa antes.
– Mas é urgente!

Alceu a olhou com curiosidade. Os olhões tinham um ar suplicante.

– É pra minha mãe. – disse ela.
– E ela não pode esperar até a tarde?
– Não. Ela está doente. Vai pra Londrina fazer cirurgia hoje à tarde.

O velho segurou uma interjeição. Já estava se sentindo culpado antes, e agora tinha a certeza de que era a pior das pessoas. Engoliu em seco, mastigou os próprios dentes, olhou para o chão, olhou para a rua.

– E você não devia estar na escola? – perguntou, tentando esconder o embaraço.
– Sim...
– Você matou aula pra vir na missa?

Ela só fez que sim com a cabeça em movimentos exagerados. Alceu balançou a cabeça em desaprovação. Voltou a olhar para o chão, depois para a rua, coçou a cabeça quase isenta de cabelos e respirou fundo.

– Você mora longe? – perguntou.
– Não. Umas três quadras.
– Eu te levo pra casa.

Ela o encarou por uns instantes, mas por fim concordou, como se tentasse evitar qualquer problema com o senhor, antes tão bravo, agora tão doce.

Os dois deixaram a escadaria para trás, e ao portão do mosteiro Alceu deu uma última olhada na direção da capela, na esperança de ver novamente o rosto de Santa Terezinha. Caminharam pelas ruas íngremes em silêncio, observando o comércio que abria as portas, dando vida à cidade que despertava.

– Minha mãe é devota de Santa Terezinha. – disse a menina.
– É?
– Uhum. Eu também. Mas ela não podia vir na missa.
– Hum.
– Aí eu vim. Todo ano ela trás rosas.
– E o que você acha que ela vai falar quando souber que você matou aula?
– Vai ficar brava! O pai também. – disse ela, rindo.

Alceu sorriu. Se lembrou de como era bom ter filhos em casa, e da sensação de acolhimento quando os filhos manifestavam amor por ele. Era amargo saber que sua filha morava em outro estado, e quase nunca ligava para saber como ele estava. Era dolorido receber notícias do filho, vivendo na capital, por meio de parentes. Não sabia onde havia errado como pai. Não queria saber. Mas a menina ao seu lado, caminhando com passos rápidos e curtos, chacoalhando a rosa mas duas mãozinhas, trouxe memórias do tempo em que sua casa era viva.

O sol fazia a careca de Alceu arder, e a menina voltou a verter suor pela testa. Seguiram em silêncio o resto da caminhada, até que ela parou diante de um portão.

– É aqui.
– Ok. Melhoras pra sua mãe.

A menina o encarava com uma súplica silenciosa, as bochechas novamente rosadas, talvez por vergonha, talvez pelo calor.

– Quer que eu fale com seu pai?

Ela fez que sim, sorrindo sem jeito. Passou pelo portão e correu na direção da casa, mochila batendo na parte de trás das coxas. Poucos instantes depois apareceu o pai, olhar inquisidor na direção do velho ao portão.

– Sua filha matou aula pra ir na missa. – disse Alceu. – E pegou uma rosa no meu quintal.
– O quê? – Exclamou o pai, olhando para a menina que estava encolhida à porta da casa. – Isadora! Venha aqui!

Ela relutou por alguns segundos, mas cedeu, caminhando com passos deliberadamente curtos e lentos.

– Ela me explicou sobre a sua esposa. – disse Alceu. – Ela está preocupada porque ela não poderia ir na missa pegar uma rosa abençoada.
– Mas mesmo assim! Você acha certo matar aula, Isadora? E você roubou a rosa do moço?
– Não roubou. Ela só pegou. Minha casa fica de frente para o mosteiro. Ela viu a rosa pelo muro e só pegou. E moço também é exagero, já tem anos.
– Mas mesmo assim!
– Desculpa pai... – disse Isadora tão baixinho que os dois quase não ouviram.

O pai só olhou para a menina, e olhou de volta para Alceu, sem saber o que dizer. Seus olhos estavam fundos, o rosto demonstrava o cansaço de quem não dorme bem há semanas.

– Devolve a rosa pro moço.
– Não precisa. – disse Alceu. – É pra mãe dela.
– Então vai pra dentro. Sua mãe já acordou.

Isadora não olhou para o pai e nem para Alceu. Deu meia volta e caminhou com pressa para a porta, as sandálias estalando no concreto.

– Não vou me intrometer na sua vida e nem na criação da sua filha. – falou Alceu. – E também não quero xeretar. Ela só falou que a mãe está doente, e que não poderia pegar uma rosa de Santa Terezinha. A intenção foi boa.

– É... A mulher é bem devota de Santa Terezinha. Eu também. Mas o negócio é difícil...
– É difícil mesmo. Tem que pegar com Deus.
– Tem que pegar com Deus.

Os dois ficaram em silêncio por um instante. Alceu só conseguia se lembrar de quando a sua própria esposa adoeceu anos antes. Por fim estendeu a mão ao pai de Isadora.

– Tenta não brigar muito com ela.
– Eu não tenho força nem pra brigar. Qual é seu nome?
– Alceu.
– Seu Alceu, muito obrigado! Desculpa pela minha filha!
– Capaz! Não precisa se desculpar! Fica com Deus!
– Amém! O senhor também.

Alceu sabia que não precisava falar muito mais que isso. Quando sua esposa estava morrendo no hospital, não teve ninguém que pudesse lhe dizer um “fica com Deus”. Desceu pela rua sem nem perceber o suor que manchava sua camisa. Estava rezando.

O rosto da Santinha estava nítido em sua mente, e ele pedia por aquela família, pedia pela saúde da mãe, pedia que chovessem rosas, chovessem bençãos. Não foi para casa, mas para a capela, onde passou a manhã sentado diante de Santa Terezinha. Chorou os lamentos que congestionaram seu peito durante a caminhada de volta, e rezava olhando para o rosto terno, embaçado pela miopia e pela catarata. As lágrimas não ajudavam.

Mais tarde, naquele dia, ele ligou para seus filhos. Meses depois eles o visitaram, reconciliações foram feitas, mágoas perdoadas, feridas remediadas. O velho conheceu seus netos. A família foi toda à missa, onde Alceu encontrou Isadora, seu pai, e uma mulher, com fartos cabelos negros e olhos de jabuticaba. A menina lhe acenou, sorridente, e o pai o cumprimentou com um aperto de mão acalorado; já não tinha o cansaço no rosto.

A imagem de Santa Terezinha não estava ali, mas Alceu a via por inteiro, nítida em sua memória. No primeiro dia de outubro ela lhe concedeu um milagre. Afastou dele a raiva e os demônios que a alimentavam, e graças a este milagre ele passou pelo caminho violento da culpa. Mas agora sua família estava unida, e a menina da rosa roubada tinha sua mãe ao lado.

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Este conto foi escrito em homenagem a Santa Terezinha, com a ajuda do meu amigo Etrusco.

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