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O perfume do desejo


Este conto foi originalmente publicado em junho de 2011, inspirado por uma canção do Rammstein.

Du riechst so gut...

Naquela noite fria eu corria entre as árvores. A neve virgem cobria o chão, tornando ainda mais difícil a minha jornada. O ar que saia de meus pulmões se condensava diante de minhas narinas e minha boca escancarada. A noite já estava na metade, e a Lua me observava através dos galhos nus.

Eu havia perdido o juízo, e seguia em frente apenas por instinto. É estranho lembrar de tudo hoje, como se fosse algum sonho... Minha memória reteve cada detalhe daqueles momentos de loucura. A ânsia, o desejo, o fogo que ardia dentro de mim, a vontade de afundar meus dentes em sua carne...

Ainda não sei o que me deixou assim, mas acredito que foi o cheiro dela. O cheiro daquele corpo jovem e firme, cujas curvas perfeitas eram a obra-prima dos deuses. Os cabelos negros que caíam compridos pelos ombros frágeis emolduravam um rosto imaculado. Olhos cor de mel, grandes e cheios de calma e sabedoria, como se exibissem o peso de muitas vidas. Pequenos lábios avermelhados, que despertariam o apetite de qualquer ser neste mundo. Quando a vi pela primeira vez, foi como se a minha vida dependesse de um beijo daqueles lábios sagrados. Mas o cheiro dela superava tudo. Era um perfume natural, que lembrava as primeira flores da primavera, misturado com o da grama molhada depois de uma chuva de verão.

O desejo que surgiu em meu peito era maior do que eu. Era doloroso, sufocante, assassino. Eu só desejava tê-la em meus braços. Com o tempo, percebi que não conseguiria conquistá-la, visto que ela sequer sabia que eu existia. O desejo ardente se tornou obsessão, e eu parei de comer, dormia mal, não tinha olhos ou mente para nada no mundo que não fosse ela e seu perfume. Eu espreitava sua casa, que ficava próxima ao bosque onde eu vivia, e a seguia quando ela caminhava pela estrada de terra. Eu chegava cada vez mais perto...

Para mim, a insanidade é uma ponte estreita. De um lado você tem a razão, a verdade, o real. E na outra extremidade existe o desejo, a luxúria, a sedução. E quando você não consegue resistir, quando você está fraco e cansado, atravessar esta ponte parece ser a única solução...

E foi isso eu fiz. Atravessei a maldita ponte.

Em uma noite qualquer, ela saiu, caminhando lentamente. Os lábios tão vermelhos quanto sangue fresco, vibrando em seu rosto pálido, de pele tão macia e sedutora. Minha perdição! Não pude resistir. Eu avancei, ávido por ela, por aquele corpo, e por aquele perfume magnífico que arrancava de mim todo e qualquer vestígio de sobriedade e inocência.

E este é o único ponto que me escapa em toda esta estória. Eu pulei sobre ela, eu gritei, eu grunhi. Acredito que os dias sem comer e dormir me atormentaram naquele momento de emoção e desespero. Me lembro de pular, avançar... Mas não sei se escorreguei no gelo da estrada, ou se tropecei em alguma pedra... Só me lembro de abrir os olhos e sentir o frio da noite sobre mim. Ela havia partido. E quando achei que havia estragado tudo, perdido todas as esperanças de tê-la em meus braços, o seu perfume invadiu minhas narinas, e meu pensamento anuviou. Eu pude vê-la, correndo assustada, com medo, sem rumo, fugindo de mim. Eu pude ver a direção.

Eu segui o cheiro de sua pele, o perfume que a natureza havia lhe dado, o aroma mais doce e mais voluptuoso do mundo. O cheiro de seu corpo, o cheiro de seu cabelo, o suor que escorria enquanto ela corria. Eu corri, completamente enlouquecido. Precisava alcançá-la. A Lua observava minha loucura, e iluminava meu caminho entre as árvores que o inverno desnudara. O chão escorregadio atrasava meus movimentos, mas a cada deslize, a cada tropeço, eu avançava com mais vontade rumo ao meu desejo.

E então, ao virar em uma curva da estrada, avistei sob o luar um pequeno pedaço de pano vermelho, rasgado, do mesmo tecido que a capa leve que ela havia enrolado nos ombros ao sair de casa. E o seu cheiro era indecente, violento. Se eu ainda possuía algum vestígio de razão, aquele pedaço de pano levou embora. Me lembro perfeitamente de ter me jogado contra a estrada com uma fúria titânica, correndo como se o chão fosse meu inimigo, e cada passo meu fosse um golpe contra sua couraça.

Contra a neve eu pude ver uma mancha vermelha, e o odor de sangue atormentou meu corpo e meu espírito. Certamente ela havia tropeçado e se machucado nas pedras. Aquela gota rubra carregava todo o pudor pálido e sedoso daquela mulher, e me mostrava tudo o que eu mais desejava no mundo.

"Eu vou te encontrar!", gritei.

Eu segui seu cheiro. Eu farejei. Eu corri. O vento assobiava em meu ouvidos, e minhas pernas fraquejavam, mas não desisti. E eis que poucos metros afrente surge um lampejo rubro sob a luz da Lua. Era ela, com sua capa vermelha esvoaçando enquanto corria, desesperada.
"Espere por mim! Não corra! Não me deixe!"

Eu uivava, gania, rosnava. Corri como nunca alguém jamais havia corrido. Pulei, e ela foi ao chão. Lá estava, meu paraíso...

Pensando sobre isso, vejo que quando olhei dentro dos olhos dela, ali sob o luar, dei o último passo, e terminei de atravessar a ponte, que agora estava em chamas. Ardia em um incêndio enorme, estonteante. E ela gritava.

Seus berros de desespero ecoavam na noite fria, sem nunca articular uma palavra sequer. Lutava. Esperneava contra mim, e eu sentia que minha vontade de rasgar sua carne alva com meus dentes aumentava a cada grito.

"Pare de gritar!", pensei. "Caso contrário, não haverá volta!"

O incêndio derrubou a ponte, destruindo a última chance de retornar. Só havia ela e eu, e nada entre nossos corpos.

E quando minha língua ansiosa percorreu sua pele úmida, meu corpo foi invadido por um êxtase sem fim.

Farejei e a encontrei. E o cheiro dela era tão bom...

Comentários

  1. Olá.
    Post divulgado na no Teia
    Até mais

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  2. Ótimo conto.
    Foi o tipo de texto que não me deixa tirar os olhos um minuto sequer. Acho que posso dizer que o texto está perfeito.

    http://wordsofthedark.blogspot.com.br/

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  3. Que bom que curtiu! Obrigado pelo comentário.

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  4. Muito bom filho parabéns eu não conseguia parar de ler e o tipo de texto que te prende.bjs

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  5. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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