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Poeta da noite


O vento assobiava, entrando pelas fresta da janela, trazendo o frio do inverno para dentro do quarto úmido, iluminado apenas pela vela sobre a mesa. A chuva caía há três semanas, dando curtas tréguas de poucas horas, e toda a casa cheirava a mofo. A tarde chegava ao seu fim, tão cinzenta quanto as últimas manhãs, e a vida parecia ter congelado.

Fausto passara os últimos dias sentado em sua cadeira dura, curvado sobre sua escrivaninha velha, escrevendo seus poemas e contos malditos. Não comera nada desde que a dispensa esvaziara, e saíra do quarto apenas para pegar mais garrafas de vinho barato, que seu porão tinha de sobra.

Não estava trabalhando em nada especifico, apenas escrevia sobre desgraças e morte, pois aquele clima o inspirava a isso. Há muito deixara de escrever sobre coisas coloridas, pois fora obrigado a vender sua vitrola e seus discos de música barroca, e nunca mais sobrou-lhe dinheiro para ir à ópera. Só o que restou foi o clima cinzento e frio e os vinhos baratos de sua falecida mãe para lhe dar inspiração. A reclusão e a escuridão fizeram dele um escritor antropofóbico, cujos temas favoritos eram mórbidos e escuros, presos em sua realidade cinzenta.

Quando o Sol se pôs definitivamente, suas vistas começaram a cansar de verdade, pois não dormia há muitos dias. Largou a pena e entornou o último gole da taça que estava à sua frente, entre os muitos papéis e cadernos. Estendeu a mão para a garrafa mais próxima, e constatou que estava vazia. Tentou com todas as outras garrafas ao redor. Todas vazias. Acendeu a lamparina e foi até o porão, e tamanho foi seu choque quando percebeu que não havia mais vinho lá.  Indignado, percebeu que seria obrigado a abandonar seu refúgio e sair em busca de comida. E vinho.

Fausto estava relutante. Não queria entrar em contato com ninguém, queria ficar ali, trancado. Assim poderia colocar no papel tudo aquilo que mais o incomodava na vida na forma de textos obscuros, bizarros, violentos, ácidos... Por fim, cedeu. Vestiu suas blusas e jogou por cima um casaco grosso de lã. Aquele era o inverno mais rigoroso dos últimos anos, e fazia tanto tempo que ele não comia que achou que seria um milagre conseguir voltar para casa.

Abriu a porta, trancada a tantos dias, e sentiu o vento fustigar-lhe o rosto. A chuva havia parado de cair há algumas horas. A luz amarelada dos postes trouxe-lhe lembranças, e ele ficou feliz quando viu que a rua estava deserta e não precisaria enfrentar os olhares questionadores dos vizinhos. Respirando fundo, deu o primeiro passo para  mundo, caminhando lentamente, com as mãos nos bolsos, tentando protegê-las do frio.

O único som que se ouvia era o uivo do vento, ou as vozes que vinham das casas, vozes de famílias, juntas para a refeição, felizes ou não. De qualquer forma, era um contato humano que Fausto há muito não tinha. Tentando ignorar essas frustrações, o poeta apressou o passo, olhando para o chão de pedras, amaldiçoando seu universo enlameado. E enquanto pensava em tais coisas, ouviu um som diferente, a voz de uma criança.

Pouco mais a frente a estrada bifurcava. O caminho da direita levava ao seu destino, uma taverna onde poderia comprar comida e bebida. O caminho da esquerda subia pela encosta de um pequeno morro onde havia apenas uma casa, solitária no topo, abandonada há muitos anos. Era de lá que vinha a voz. Ele parou na bifurcação, olhando para a velha casa, pensando se deveria ir até lá. A voz da criança parecia cantarolar alguma canção infantil, mas o som era entrecortado pelo assobio do vento.

Sem dar importância, Fausto voltou para o caminho da direita. Mal dera três passos e o vento acalmou por alguns instantes, e ele ouviu a voz novamente, mas, desta vez, ela não cantarolava. Ao invés disso, emitia um lamento horrendo, cheio de sofrimento e angústia. Fausto sentiu algo estranho, uma mistura de asco e desespero, pois aquele choro, mais próximo de um gemido, causou mais terror do que qualquer outra coisa que ele já vira ou ouvira antes.

Ele não conseguiu compreender o motivo daquela sensação tão ruim, aquela pontada na boca do estômago. De repente sentiu a necessidade de ir até lá, mesmo não querendo. Preferia seguir seu caminho sem olhar para trás, mas não conseguiu. Deu o primeiro passo em direção ao morro, e então desatou a correr caminho acima.

Neste momento as nuvens se abriram, depois de tantas semanas de céu fechado. A Lua surgiu por completo no firmamento, e sua luz pálida tomou conta da escuridão. Fausto alcançou o topo do morro, e lá estava a casa, velha, lúgubre e agourenta. No primeiro degrau da escada de entrada estava sentada uma garotinha, de no máximo nove anos de idade, bem vestida e de laço no cabelo. Ela tinha o rosto distorcido pelo sofrimento, e suas lágrimas pingavam pelo queixo. Estava mais pálida que a Lua, que agora era testemunha daquela cena estranha.

Com gemidos longos e agudos a menina pranteava copiosamente, com tanta amargura que Fausto sentiu vontade de chorar também, pois fora tomado de piedade por aquele rosto juvenil maculado por tanta dor. Mas ao mesmo tempo que sentia compaixão, sentia também um medo inexplicável, cada vez maior, e não sabia se esse medo era da garota, da casa ou de alguma outra coisa, mas estava suando frio de tanta apreensão. A razão dizia que ele deveria ir até a menina, perguntar de onde era e porque estava ali, e que deveria ajudá-la, levá-la aos seus pais, ou talvez à polícia. Mas a sua intuição o alertava, dizendo-lhe que deveria ir embora daquele lugar e deixar a menina lá.

Fausto estava tão dominado pelo medo que não notou quando o vento parou por completo e os sons da cidade desapareceram, deixando o silêncio mórbido da expectativa tomar conta da atmosfera, uma quietude pegajosa e asquerosa.

De repente a garota parou de chorar, soluçando e olhando fixamente para Fausto. E quando o rapaz esboçou a intenção de falar algo, ele viu um objeto brilhando na mão dela. Era um punhal. Segurava-o bem junto ao peito, apertando o cabo com força. Na outra mão havia uma pena vermelha. Intrigado, Fausto deu mais alguns passos em direção à menina, e parou quando estava perto o bastante para distinguir-lhe o rosto. Nunca vira aquela garota antes. Talvez não vivesse ali, talvez estivesse perdida, ou talvez ele tivesse passado tempo demais em casa. Não sabia.

Os dois se encararam durante alguns minutos em silêncio, imóveis como estátuas. A sensação de que algo ruim estava para acontecer aumentou, mas Fausto parecia estar pregado ao chão, sem ter forças para tentar sair dali. Tinha vontade de dar meia volta e correr, se esconder em casa. Seu medo atingiu um nível inimaginável quando a menina finalmente se moveu. Levantou-se devagar, encarando-o fixamente. Fausto não sabia o que fazer, sentiu a voz desaparecer em sua garganta quando tentou gritar, e seu coração começou a pular com violência, como se quisesse romper seu peito.

De repente a menina sorriu. E não foi um sorriso infantil, mas um sorriso hediondo, malévolo, cruel, o sorriso dos sádicos, dos tiranos, dos demônios em forma humana. Imediatamente o ar passou a emitir um som grave que fez o corpo de Fausto tremer. Seu sangue pulsava com força em suas têmporas, enquanto o sorriso maldoso da garota pareceu se aproximar dele. Não havia limites para seu terror, seu corpo estava entregue, ele já não pertencia a si mesmo.

E foi com esse sorriso malígno que a garota levantou a mão direita, segurando o punhal acima da cabeça. A lâmina brilhou sob luar, como fogo prateado. A consciência de Fausto implorava para que aquilo parasse, para que ele fizesse alguma coisa, para que aquela menina desaparecesse, para que o tempo voltasse, para que ele fosse embora e deixasse a garota sozinha, entregue à própria ruína. Mas nada disso aconteceu.

“Não me condene a isso!”, foi a frase que surgiu na mente do rapaz. Cada instante estava tão preso a ele que nem em cem anos de vida ele poderia esquecer aqueles momentos quase eternos. Ele pôde ver o ar se deslocar, lento e frívolo, enquanto a garota baixava o punhal em direção ao próprio ventre. Ela foi ao chão com uma expressão de prazer no rosto, algo ainda mais imundo que seu sorriso de antes. O som grave desapareceu e o vento voltou a soprar, e Fausto pôde sentir a realidade novamente. Mas antes que pudesse respirar aliviado, o som de um beijo se fez ouvir, e ele sentiu que lábios gelados tocavam seu rosto. Suas pernas fraquejaram, e ele foi ao chão..

Sem forças para se mover, Fausto permaneceu deitado, olhando fixamente para a menina, cujos olhos miravam o vazio. Seu rosto jovem ainda apresentava aquela expressão de satisfação mórbida. Seu sangue escorreu pela ferida, formando uma poça rubra diante de Fausto, que permaneceu imóvel por um longo tempo, até sentir a razão voltar. Com um pouco de esforço conseguiu se sentar na grama mal tratada, e seu olhar caiu sobre a pena que a menina ainda segurava. De uma forma estranha ele sentiu vontade de pegar aquela pena, como se o poeta dentro dele pedisse por isso, pois o poeta era intocável, imune ao sofrimento do mundo. O poeta só queria escrever, presenciar o bem e o mal, para depois relatar tudo em versos. E seguindo esse impulso, Fausto tomou a pena da mão gelada e branca da menina morta.

Agora ele poderia escrever seus temas obscuros, pois o sangue da menina estava em suas mãos. Em suas vestes. Em seu rosto. O pequeno corpo da menina estava todo ferido, e seu sangue estava espalhado por todo o lugar. Como se tudo fizesse sentido agora, Fausto olhou para suas mãos vermelhas e sentiu os olhos marejarem. Nunca mais seria o mesmo. Estava condenado. Havia se perdido no próprio delírio, na fome e embriaguez de tantos dias, na alucinação febril do poeta eterno.

Antes que pudesse se levantar percebeu que não estava só. Olhou para trás e viu um grupo de pessoas, algumas com tochas, outras com pedaços de pau e pedras nas mãos. Todos encaravam-no com espanto.

- O que você fez, meu rapaz? - foi a pergunta do velho taverneiro ao se aproximar de Fausto.

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